O rapaz estava morando sozinho na Capital, fazendo o curso de Medicina, e o tio-avô o convidava vez em quando para comer no casarão do Cabo Branco. Bom negócio para os dois: para o rapaz que se alimentaria melhor sem gastar nada e para o tio que teria companhia em sua célebre solidão. De certa forma, um encontro. Um encontro familiar e de gerações, no qual ambos os protagonistas teriam o que trocar – e ganhar. O tempo iria mostrar – e mostrou.
O sobrinho chegou tímido na casa-grande de beira de praia, como uma visita cautelosa. Intimidava-o não só a construção imponente, apesar de simples, mas a fama e a autoridade daquele tio-avô
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As refeições eram feitas numa clara e arejada sala do piso térreo que dava para o quintal, a paisagem verde a compor o idílico quadro de um jovem e um quase ancião a compartilharem a comida simples, saudável e paraibana, proclamada receita da longevidade e saúde do anfitrião. Ali só tinham acesso os íntimos, pois os demais, mesmo que importantes, limitavam-se à espaçosa varanda, preservada fronteira da indevassável domesticidade do dono da casa. Este, sempre cioso de sua reserva, não concedia aproximação e familiaridade a qualquer um. Na verdade, a quase ninguém, mesmos aos mais próximos, fossem amigos ou do sangue. Havia ao seu redor como que uma invisível barreira que, não o isolando das pessoas, guardava-o para si mesmo. Mas sem qualquer arrogância nem mundano orgulho.
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Uma vez, no quarto, o rapaz precisou lavar as mãos. Ia descer ao toalete social do térreo, quando o tio lhe disse que podia usar o banheiro anexo, aquele que o servia exclusivamente. O sobrinho entrou no local, lavou as mãos e observou o entorno com olhos não do futuro oftalmologista que seria mas do arquiteto
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A resposta marcou o sobrinho, que ainda hoje a relembra emocionado. O tio era assim mesmo, morigerado. Anos atrás, no Rio de Janeiro, quando ministro, não raro ia para o trabalho e voltava para casa de ônibus, para espanto dos companheiros de lotação que o reconheciam, figura pública que era, com foto frequente nos jornais. Exemplo admirável de homem público, gradativamente – e à sua revelia – transformado em reserva moral do país, numa época em que tal mercadoria já começava a escassear no Brasil.
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Com a partida do tio-avô, o casarão transformou-se em museu a ele dedicado. O sobrinho vez por outra o visita, para algum evento cultural. E nunca perde a oportunidade de contemplar, não sem doce nostalgia, a antiga sala envidraçada onde sua um pouco já distante juventude alimentou fartamente corpo e espírito.