A angústia acompanha a história do homem desde a antiguidade. Impossível separar sua presença a partir da certeza da morte, e, a perspecti...

Serenidade

A angústia acompanha a história do homem desde a antiguidade. Impossível separar sua presença a partir da certeza da morte, e, a perspectiva da fatalidade leva ao teatro do disfarce, da ilusão e da fuga.

“A angústia nos suspende porque ela põe fuga o ente em sua totalidade” (Heidegger)

Para atingir a sabedoria de mesclar a dor existencial com um pouco de alegria, surge a pressa de viver intensamente cada segundo, de nada perder, de consumir emoções como se não houvesse um só amanhã. As viagens são as opções comuns, pois transportam o indivíduo para “outro” lugar diferente do lugar da questão, e fora do seu mísero controle. Nas malas maiores seguem os sonhos de idealização e nas menores, as fantasias do que será minimamente necessário para esquecer.

O planejamento dá início a uma sensação de leveza e esperança, essa mesma da qual estamos cada dia mais carentes!

“Mais agora cessai e nunca mais para o futuro O lamento suscitai;
Pois, em todos os quadrantes, o que aconteceu
Retém junto a si,
Guardada, uma decisão de plenitude ” (Sófocles)

O itinerário elaborado de acordo com a procura de um mundo perfeito, o belo, o irretocável! A única coisa que alerta para a tal “sombra da morte”, é a exigência do seguro saúde para rotas internacionais, o que comprova a presença, mesmo envolta em tantos planos, do risco, da insegurança, da possibilidade da perda.

“Que dizes viajante, de estações, países?
Colhestes ao menos tédio, já que está maduro? ” (P Verlaine)

Um segundo viés da dor, aparece no perfil das compras. . . sempre justificadas, mas compulsivamente usadas para preencher o vazio interior. E, na verdade, são proporcionais à extensão do mesmo. Quanto mais famosa a marca e maior o valor, menor o sentido que se dá ao pensamento, à humanização, até mesmo à espiritualidade. A verdadeira pobreza reside onde o poder econômico não consegue suprir.

“Mal abrimos os olhos, pelas manhãs, somos assaltados pela fúria das compras. Urge logo pagar com moedas o que pertence ao domínio do sonho” (Nélida Piñon)

As festas também participam do processo de maquiagem do trágico. Há um ritual de preparo, de providencias a serem tomadas, como bufê, fotografias, decoração, e, as roupas a serem exibidas. Posteriormente, a divulgação nas redes sociais e a confirmação do sucesso, com a “curtição” dos amigos e conhecidos. E, às vezes, não é preciso um grande evento para encontrar a euforia. Pequenos grupos em churrascos com cerveja, também buscam afastar a angústia, em troca do bem estar instantâneo, auxiliado pelo álcool.

Outros perseguem a felicidade na atividade física, com programas de corrida, de pedal, horas narcísicas na academia, desafiando o corpo, para que, cada vez mais vigoroso, rejuvenesça, natural e artificialmente, pronto para uma vida “quase” eterna.

“Todos estão usando um disfarce, para esconder o que eles têm por trás dos seus sonhos” (Bob Dylan)

Com a pandemia, a angústia travestiu-se de medo, porque adquiriu o concreto e o real perigo. Todos os caminhos de escape, se tornaram impossíveis. Tempo de repensar conceitos e descobrir a arte, pois a cura dos males pode se esconder na criação, na escrita, na música, na reorganização interna dos impulsos, com outras vertentes de alívio. Novos prazeres foram descobertos e por dois anos, os valores mudaram, não definitivamente. . . após redução das medidas sanitárias e vacinação, tudo volta ao normal, ou aparente normal. As viagens retornam gradativamente, e antes de atravessar o oceano, um percurso no próprio Estado, oferece a questão e quem sabe a resposta? Onde está a felicidade, consôlo de toda angústia? Porque ela é feita de espaços transitórios, efêmeros. Qual é o segredo?

“A felicidade que pertence ao homem é aquele estado em que ele desfruta de tantas coisas boas e sofre o mínimo possível dos males incidentes sobre a natureza humana” (Epicuro)

Uma cena vista semanalmente nas manhãs dos sábados, intriga e suscita um misto de interesse e curiosidade. Uma casinha bem simples, apenas com uma parte rebocada, uma varanda estreita e um peitoril irregular, equilibra-se no alto, entre a rodovia e a montanha. Algumas galinhas ciscam procurando alimento para sua ninhada. Os carneiros vistos, pastam junto a um lajedo, e um filtro de barro quebrado serve de bebedouro para todos.

O movimento que acontece nesse ermo local, é o passar dos automóveis, o que faz os moradores dispersos da região, prestarem atenção ao fato. No entanto, alguém dá as costas para a diversão, é uma senhora de uns oitenta anos ou perto disso, que parece uma imagem fixada. . . sentada ao lado do terraço, solitária, olha fixamente para o alto. Com a repetição da cena, a viajante atípica decide parar o carro e decifrar o enigma. Cumprimenta a senhora, elogia a vista que a fascina tanto. E, a conversa adquire uma característica inusitada e surpreendente:

- Porque a senhora não coloca sua cadeira para assistir o ir e vir das pessoas?

- Ah minha filha, já fiz muito isso, mas não ficava satisfeita, porque não me importava para onde seguiam. . . era a vida deles! A minha já atravessei com seus sofrimentos e alegrias, os filhos partiram para as “cidades grandes” e só eu e meu velho moramos aqui agora.

- E como a senhora passa seus dias?

- É assim: Acordamos cedo, ainda escuro, eu faço o meu trabalho que é lavar a roupa, cozinhar e limpar a casa. Ele cuida dos carneiros e de uma vaquinha, da plantação e dá milho às galinhas. Uma vez por semana ele faz as compras na mercearia lá na frente. . . não nos falta nada. À noite rezamos o Terço e cantamos o Ofício de Nossa Senhora, jantamos e dormimos cedo.

- Mas, a senhora não sente falta de conviver com outras pessoas, de ter vizinhos, de passear?

- Um sorriso acompanha o balançar da cabeça, negando a pergunta.

- Não, moça, nós gostamos de viver assim, na paz, sem querer mais do que nós temos.

- E por que sua cadeira é voltada para a montanha?

- Deus fala com os homens no alto da terra, onde os passarinhos fazem casa nos galhos e o vento assanha as folhas das árvores. É muito mais bonito, não é? Com essa idade, a alma tem que estar desapegada das coisas, para quando voar, não ter peso para levar!

Com a resposta filosófica sobre da curiosa personagem, a conclusão mais fiel, encontra-se na busca da Serenidade, onde a aceitação da finitude e valorização dos pequenos prazeres do dia a dia, a busca da transformação do sintoma em atividade produtiva, apazigue e amadureça o coração dos homens, conquistando uma feliz tranquilidade.

“Há momentos na vida em que se deveria calar e deixar que o silêncio falasse ao coração, pois há emoções que as palavras nem sabem traduzir” (Jacques Prévert)

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  1. Uma crônica de viagens suis generis, de caráter psicanalítico. Rica em citações.
    Muito bom, o texto, muito bem escrito, como sempre.
    Parabens para a autora!

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  2. À primeira vista achei que a senhora local seria a esfinge, mas ela é a própria resposta do enigma.

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