Costumam visitar meu quintal nos finais dessas tardes estivais. Estimo a chegada desses passarinhos, talvez pelo som que emitem, pois me ...

E agora bem-te-vis?

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Costumam visitar meu quintal nos finais dessas tardes estivais. Estimo a chegada desses passarinhos, talvez pelo som que emitem, pois me parecem propostas de benquerença: Bem-te-vi! Não é bonito ouvir isso dessas avezinhas canoras?

Debaixo daquela copa exuberante do jambeiro-rosa que fica ao fundo de meu quintal, costumamos, eu mulher e filha, gastar alguns dedos de prosa nos finais de tarde. Coisas sem importância, banais, outras vezes até arriscamos em searas mais complexas, conversas que exigem um pouco mais de nossos neurônios. mas tudo é apenas um pretexto para estarmos juntos. Para mim há um toque de magia nesses momentos.

Nessas horas é que minhas avezinhas douradas costumam aparecer. Chegam bem atrevidas e cismo até não nos temerem, tão perto chegam. Devem, lá em seus instintos, entender que não lhes faríamos mal. Ficam ali bicando uma coisinha ou outra. São valentes as danadinhas. Sabiam disso? Pois sim, atacam os gaviões com muita obstinação e espantam o rapinante. Onde está o bem-te-vi não está o gavião. Um alívio para meus canários.

Então, hoje resolvi conversar com meus bem-te-vis. Espero que continuem aparecendo por aqui. Vê-los, há de dar-me a convicção de que o mundo vai girando e nesse giro a vida segue seu percurso natural. O que quero dizer com isso? Simples meus caros e valentes amigos (estou conversando com os bem-te-vis). Assim como seus filhotes, quando ganham penas e musculatura, batem suas asinhas e vão ganhar o mundo, minha “filhota” ganhou penas, encorpou e ontem migrou para bem longe. Quando vocês vierem por aqui à tardinha não a verão mais. Minha avezinha alçou voo, coisas da vida.

A criaturinha cresceu e eu nem notei que virara mulher. Passou por aqui e levou seus livros, outros pertences e um pedaço de mim. É a caçula de uma prole de sete. Dois fizeram aquela viagem antes do combinado, pérolas que devolvi. Esta é, como dizem, a raspa do tacho, ou ainda a última promissória que resgatei.

Então, chegou a minha vez de experimentar o vazio da velhice.

A doce sensação de dever cumprido, os filhos formados e encaminhados não arrefecem minhas saudades. Tenho orgulho de ver essa minha engenheira já desvendando os mistérios da profissão, toda envaidecida de sua repentina independência, mas essa minha imodéstia vai demorar para preencher esse vazio, se é que vai.

Timidamente deixei meus conselhos, frutos dos bons combates que travei durante esses anos todos. De mim só poderá herdar exemplos, como obstinação, resiliência e honestidade; valores fundamentais para dividir com os travesseiros a paz de uma noite bem dormida. Creio que nem precisaria ter lhe dito essas coisas. Faz tempo que lhe dei régua e compasso para traçar seus caminhos.

Ah meus caros bem-te-vis. Despedir é tarefa difícil. Quero que ela guarde boas lembranças daqui.

No domingo fomos ver o Sol nascer. Praia de Tambaú, a maré alta estava escandalosa, barulhenta. Tive, lá com meus botões, a sensação da despedida dela com esse pedacinho de chão.
Aquelas águas não sabem como eu, chorar em silêncio, daí o rumor triste da arrebentação. As despedidas são assim.

Meus bem-te-vis, cá estou eu, como dizem, recolhendo os cacos. Vou superar, claro que sim. Vou juntando as lembranças singelas, da menininha que chorava pouco, mas era geniosa. Gostava de bichos (ainda gosta), pensei até que ia ser veterinária. Vejo surgir entre as nuvens a garotinha que pediu que eu tirasse as rodinhas sobressalentes de sua bicicleta para mostrar-me seu prodígio no equilíbrio. Depois a habilidade no piano, os tempos de escola...trabalhosa que só. Os primeiros amores, mas como disse o “poetinha”, [...] “De antigos amores./ Que vieram, mas não era/ Um amor que espera./O amor primavera”. Hoje seu coração, me parece, ter achado esse tal de amor primavera. Tomara que sim.

É isso aí. Vou parar por aqui, encurtar esse adeus. Não deixem de aparecer nessas tardes de estio. Vou estar por aqui. Naquela mesma mesa. Mais triste, mas não vou deixar de comparecer... Como agora que juntei o que me sobrou para escrever essa saudade. E se eu sentir que está custoso levar em frente, conto com vocês para saber que rumo tomar. Então lhes perguntarei: E agora, bem-te-vis?

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  1. Não faz muito, assisti ao que v. acaba de nos contar: um bem-te-vi dando rasantes num gavião, no alto do edifício ao lado de nossa casa. Tantas deu, aguerrido, feroz, que o
    outro, sombrio, se foi. Mais uma vez o Davi lascou Golias, Oliveiros venceu Ferrabrás, Siegfried derrotou Fafner, Ulisses inutilizou o Ciclope, o camundongo Jerry... botou o Tom pra fora. Eu, você - de certo modo - fomos assim, também,... destronados pelos filhos. E essas visitas ainda gozam de nós: Bem-te-vi! Bem-te-vi! Sua vantagem... e a minha, Paiva, é que a gente não é mais criança, escreve, e - assim - pode lhes dizer a mesma coisa... sub specie aeternitatis.

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    1. Amigo Solha.Vamos entrentando o passar do tempo. No meu caso, mais por teimosia do que por coragem. Grande abraço, meu caro.

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