Começo contando a história, colhida de Luiz Felipe Pondé, o qual, segundo afirma em um dos seus livros, colheu-a de outros. Uma milionária...

A milionária e o jardim de 700 anos

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Começo contando a história, colhida de Luiz Felipe Pondé, o qual, segundo afirma em um dos seus livros, colheu-a de outros. Uma milionária paulistana apaixonou-se por jardinagem e começou a cultivar um jardim em sua casa, certamente uma mansão. Para tanto, contratou os serviços da melhor firma de paisagismo de São Paulo, a qual, naturalmente, executou um belíssimo projeto. Muito bem. Imagina-se que o jardim da milionária, mesmo jovem e certamente incluindo plantas e árvores já crescidas, o que atualmente é perfeitamente possível nesse ramo de atividade, tenha enchido os olhos da dona e de suas amigas, como seria de esperar. Continuando interessada em jardinagem, certo dia, em viagem pelo interior da Inglaterra, nossa milionária avistou uma casa com um jardim que a encantou.
Ed
Provavelmente não era uma mansão, mas uma simples casa de aldeia inglesa, dessas que a gente vê nos filmes, nas quais se pressente a passagem dos séculos. A paulistana, muito desenvolta com seu inglês tupiniquim, bateu à porta e foi atendida por uma simpática senhora. A milionária elogiou muito o jardim, claro, e perguntou havia quanto tempo ele era cultivado. “Setecentos anos”, respondeu a inglesa, como se fosse a coisa mais normal do mundo. A paulistana, que talvez até fosse quatrocentona, ficou chocada e, imagino eu, quase desmaiou, para não pouco espanto da civilizada aldeã.

Sem dúvida, uma pequena história com imenso potencial para reflexões. A começar pelo simbolismo do jardim. Não são poucos os filósofos que falam sobre o jardim, nosso real ou hipotético jardim, como um recomendável local de refúgio diante do mundo cruel. A velha história: se não temos como mudar o mundo irremediável e as pessoas incorrigíveis, recolhamo-nos ao nosso jardim, cuidemos das nossas flores e esqueçamos o resto. Pascal, nessa mesma linha de pensamento, escreveu que “A causa única da infelicidade do homem está no fato de ele não saber ficar tranquilo em seu quarto”. Ou seja, no seu canto, cuidando de seu jardim. Uma filosofia de vida válida, claro. E muito atraente.

Ed
Mas o que seria do mundo se todos fôssemos apenas cuidar de nosso próprio jardim? É uma indagação legítima e necessária num eventual debate sobre a questão. Podemos e devemos nos dar esse luxo isolacionista? Como seria e estaria o mundo se todos fôssemos apenas jardineiros de nosso quintal, sem qualquer envolvimento com os problemas situados além do muro individual? É provável que a dita civilização pouco tivesse evoluído, salvo quanto às práticas relativas à arte da jardinagem. Conclusão possível: coletivamente, o cultivo exclusivo do jardim pessoal seria um desastre social; individualmente, como eventual fuga do mundo, nada contra; em muitos casos, é uma prática terapêutica que pode até salvar vidas. Coisa para se pensar.

Mas voltemos à nossa milionária paulistana. Pensando bem, ela não podia ser uma quatrocentona. Se mandou fazer um jardim novo certamente foi porque não possuía um jardim antigo, quatrocentão. Seu jardim, portanto, era novo-rico. Bonito e exuberante, sim, mas novinho em folha, feito ontem, ou seja, sem tradição. Sua mansão também devia ser igualmente recente, sem a pátina do tempo, como costumam dizer os arquitetos de interiores. Essa tal de pátina do tempo que a gente vê, por exemplo, em Veneza ou em Roma, com seus prédios, casas e monumentos descascados, o musgo crescendo, a pintura gasta, um espetáculo de aparente desleixo, mas que é apenas a preservada assinatura dos séculos, diferente do que ocorre com nossas ruínas brasileiras, apenas vítimas abandonadas de nossa barbárie.

Ed
Como poderia deixar de chocar-se nossa desprevenida conterrânea com os setecentos anos do jardim inglês? Como poderia ela conceber, apenas conceber, em sua talvez ingênua ignorância tropical, que um simples jardim doméstico pudesse vir sendo cultivado ininterruptamente há sete séculos? Como poderia seu caro e sofisticado jardim, plantado ainda ontem, concorrer com a plurissecular antiguidade daqueles canteiros e flores aldeãos, tão simples em sua beleza espontânea? Pobre milionária paulistana, amoníaco para ela cheirar, por favor.

Esta é, sem dúvida, uma das características da cultura evoluída: a valorização do tempo e, consequentemente, do passado. O respeito pela tradição. Não num sentido esnobe e elitista, claro, mas num sentido cultural, histórico e estético, sem o qual pouco nos distinguimos dos bichos.

Fico pensando se a milionária aprendeu alguma lição com aquele jardim de aldeia. Espero que sim. Mas, por outro lado, estou certo de uma coisa: seu projetado jardim paulistano, exuberante e caro, nunca completará setecentos anos. Brasileiro não sabe o que é isso.

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  1. Beleza, Francisco Gil Messias. Como a milionária do teu conto, também me encantei com o que vi de flores em Londres, quando estive lá em 2008.Logo que eu e Ione saímos do hotel, demos com uma rua estreita que nos pareceu de conto de fadas: quantas jardineiras floridas! Tudo quanto era de casa, loja, agência bancária, restaurante contava com janelas e entradas floridas. Cada poste, na rua, tinha, suspensos, dois cestões de flores. Perguntei a uma senhora, como isso se mantinha - sem uma flor ou folha seca no chão, tudo perfeito. "A prefeitura mantém os cestões dos postes. E várias empresas cuidam das jardineiras das casas comerciais e residências." Essa... gentileza geral se refletia na atenção de que fomos alvos por toda parte. Perdidos no caminho de volta para o hotel, pedimos orientação a um senhor que vinha em sentido contrário, com vários livros nos braços. Ele voltou, conosco, ... um quarteirão. Quando um pedreiro, junto a uma esquina, não soube me dizer como eu chegaria à catedral de Saint Paul, uma jovem que passava parou, rindo, chamou-nos até onde estava e mostrou o templo... em que o beco ao lado desembocava. Isso tudo com meu inglês de ginásio, que entra no conteúdo de uma terceira atenção recebida: um senhor com uma menina de cada lado, quando lhe perguntei onde ficava o British Museum, perguntou, preocupado: "What?" Caprichei na pronúncia e ele continuou sem me entender. Peguei um folheto do bolso e lhe mostrei a foto do museu. "O - disse - British Museum!" e eu, rindo: "What?!" - e caímos, ambos, na gargalhada. Flores. Não à toa o livrinho sobre o Poverello de Assis tem o nome de "I fioretti": "florilégios". Considero este espaço de Germano Romero igualmente... florido ... por textos como esse, teu.

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