Ontem, 10 de junho, foi o aniversário da morte do poeta Luís Vaz de Camões e também o Dia Nacional de Portugal . Ao que parece, a dupla...

Camões e a Língua Portuguesa

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Ontem, 10 de junho, foi o aniversário da morte do poeta Luís Vaz de Camões e também o Dia Nacional de Portugal. Ao que parece, a dupla efeméride passou em brancas nuvens entre nós, evidenciando-se cada vez mais o esquecimento de uns e o pouco caso de outros em relação ao poeta lusitano, nossa maior expressão literária e considerado o iniciador da língua portuguesa moderna, com o épico Os Lusíadas, a partir do qual podemos traçar o percurso dos primórdios de Portugal até a época de Camões.

Viriato ▪ G. Mariani
Viriato defendeu heroicamente a Lusitânia (século II a.C.), nome que a região em que habitava recebera do invasor romano à Hispânia (Canto I, estrofe 26):

Deixo, Deuses, atrás a fama antiga Que coa gente de Rômulo alcançaram, Quando com Viriato, na inimiga Guerra Romana, tanto se afamaram.

O conde Henrique de Borgonha traça os limites do Condado Portucalense, recebido como dote pelo casamento com D. Tareja ou Teresa, filha bastarda de D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, de cognome Imperator totius Hispaniae, Imperador de toda a Hispânia (Canto III, estrofe 25):

E pera mais sinal de amor profundo, Quis o Rei Castelhano que casado Com Tereza, sua filha, o Conde fosse; E com ela das terras tomou posse.

D. Afonso Henrique, filho do Conde e de D. Teresa, dá início ao reino de Portugal, lutando primeiramente contra a mãe e o padrasto, depois contra cinco rei mouros, na Batalha de Ourique (1139). Em seguida, ele estende os seus limites para o sul, após “cerco aos muros Ulisseus” (Canto III, estrofe 58), nome de que se origina Lisboa, cidade conquistada, em 1147 (Canto III, estrofe 42):

Mas já o Príncipe Afonso aparelhava O Lusitano exército ditoso, Contra o Mouro que as terras habitava De além do claro Tejo delitoso; Já no campo de Ourique se assentava O arraial soberbo e belicoso, Defronte do inimigo Sarraceno, Posto que em força e gente tão pequeno.

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D. João I ▪ G. Brié
D. João I, o Mestre de Avis, por sua vez, livra definitivamente Portugal do jugo espanhol, em Aljubarrota (1385), como o mostra o poema (Canto VI, estrofe 43):

No tempo que do Reino a rédea leve, João, filho de Pedro, moderava, Despois que sossegado e livre o teve Do vizinho poder, que o molestava.

Vasco da Gama e D. Manuel fazem-no maior, com a grande empreitada das navegações, passando “ainda além da Taprobana” (Canto I, estrofe 1); D. João III enceta a colonização da América portuguesa. Portugal tendo se firmado como importante império, cabe ao poeta Camões dar-lhe a feição mais duradoura da língua com Os Lusíadas, em 1572.

Camões não precisaria ter escrito os sonetos, as canções, as églogas, as elegias, as redondilhas ou o seu teatro. Bastaria ter escrito Os Lusíadas, para ficar na história. Poema monumental sobre a história de Portugal, partindo da expedição de Vasco da Gama, mas fazendo um retrospecto desde os tempos mais remotos até o Portugal contemporâneo do poeta. Além disso, ele liberta a nossa língua da influência do gallego. Com Os Lusíadas, Camões realiza a Aljubarrota linguística.

Embora este épico exalte o heroísmo de Vasco da Gama, “O peito ilustre Lusitano/A quem Neptuno e Marte obedeceram” (Canto I, Estrofe III), Os Lusíadas não trata apenas da expansão do império português, como pudemos ver nos poucos versos citados acima, mas nos traz lições sobre vários assuntos, dentre eles, óbvio, o Amor, ideal ou erótico, como se pode ver no episódio da “Ilha dos Amores” (Cantos IX e X), em que Vênus concede aos heróis lusitanos “um prêmio e doce glória/ do Trabalho que faz clara a memória” (Canto IX, estrofe 39). Não esqueçamos, sobretudo, a lição que o poeta dá aos que ousam falar do Amor, sem o terem exprimentado (Canto IX, estrofe 83):

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Vasco da Gama ▪ Wiki
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Um dos pontos fundamentais do poema é, contudo, a queixa do poeta, em relação à desvalorização da Arte. No Canto V, depois de exaltar Júlio César, como grande escritor e orador, e Alexandre Magno, como leitor de Homero (estrofe 96), o poeta deplora o fato de que apenas os capitães da nação portuguesa não são doutos e cientes, e, envergonhado, cita o porquê (estrofe 97):

Sem vergonha o não digo: que a razão De algum não ser por versos excelente É não se ver prezado o verso e rima: Porque quem não sabe a arte, não na estima.

Sendo por esta razão e não por falta de natureza que na língua portuguesa “Não há também Vergílios nem Homeros” (estrofe 98). Já, no epílogo do poema, se queixa o poeta do mesmo desprezo à cultura em sua pátria (Canto X, estrofe 145):

Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dũa austera, apagada e vil tristeza.

É a deixa camoniana para outro assunto que devemos considerar dentro de Os Lusíadas: a má política que toma conta de uma nação e se exaure entre a cobiça e a rudeza, terminando por enfraquecer o país e o seu povo. Camões condena ambas as coisas. Inicialmente, a fraqueza na figura de D. Fernando (Canto III, estofe 138):

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D. Fernando I ▪ Wiki
Do justo e duro Pedro nasce o brando (Vede da natureza o desconcerto), Remisso e sem cuidado algum, Fernando, Que todo o Reino pôs em muito aperto; Que, vindo o Castelhano devastando As terras sem defesa, esteve perto De destruir-se o Reino totalmente; Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

A condenação da vã cobiça vem na fala do Velho de Restelo (Canto IV, estofe 95), “com o seu saber só de experiências feito” (estrofe 94):

– Ó glória de mandar, ó vão cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça Cũa aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!

Atemporal e universal, o poema não está se referindo, necessariamente, ao Rei D. Fernando, na condenação da sua fraqueza com que arrasta o país a uma quase ruína. Do mesmo modo, não são “os barões assinalados” os únicos alvos do Velho do Restelo. A fraqueza de um lado e a ambição do outro podem muito bem se aplicar a D. Sebastião que fracassa na Batalha de Alcácer-Quibir (1578), quanto a D. Henrique, o cardeal regente, que coloca Portugal nas mãos de Felipe II (1580). Mas não fica por aí. Como a poesia tem asas que ultrapassam qualquer limite, podemos constatar como o mundo moderno ainda se encontra dividido, ante a fraqueza de alguns governos e a ambição de tantos outros.

Por esta e por outras, Camões é grande. Não obteve grande coisa ou grande reconhecimento em vida, além de uma pensão concedida pelo rei D. Sebastião, depois transferida para a sua mãe, por ocasião de sua morte.

O poeta, cujo destino foi a vala comum, seria reconhecido, contudo, muito próximo de sua existência, por nada mais, nada menos do que Miguel de Cervantes. No Segundo Volume do D. Quixote, Capítulo LVIII, vê-se uma pastora elogiar, diante do Cavaleiro da Triste Figura, uma égloga “do excelentíssimo Camões”, estudada “em sua mesma língua”.

Capa da primeira edição de Os Lusíadas ▪ ed. Antonio Gonçalvez ▪ Lisboa ▪ 1572 ▪ Fonte: Wikipedia
A língua é um sistema, a linguagem a sua realização. O sistema se alimenta e, ao mesmo tempo, alimenta a linguagem, sendo sempre maior do que ela. Nesse processo de construção da língua entra o uso que se faz dela por grande parte da população e que, de modo muito dinâmico, vai se atualizando, mas permanecendo no sistema. São os escritores e, sobretudo, os grandes escritores, que dão a feição mais consistente da língua, sem a qual, ela não se perpetuaria e um povo não se entenderia. Como diz o provérbio latino Verba volant, scripta manent – A palavras voam, os escritos permanecem. Camões é desses escritores grandiosos dos quais, a todo instante, estamos lançando mão seja pela beleza poética ou estilística, seja pelo apuro formal, elementos que fundamentam uma língua.

Os Lusíadas permanecerão, a despeito de ainda ser, entre nós, desconhecido e mal lido, sobretudo, neste momento de cultivada ignorância, em que se ouve mais a voz da “gente surda e endurecida”, do que a do poeta e sua suprema Arte, que faz cessar “tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta” (Canto I, estrofe III) e a quem não faltou “na vida honesto estudo/ com longa experiência misturado” (Canto X, estrofe 154).

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  1. Flávio Ramalho de Brito11/6/22 07:28

    Artigo digno da grandeza de Camões

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  2. Obrigado, Flávio Ramalho!

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  3. Excelente texto, Milton. Quanto à lembrança da data de 10 de junho, ontem a colunista do site uol, Thaís Nicoletti, lhe fez referência.

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