Em março de 1808, a Corte portuguesa desembarcava no Rio de Janeiro. Deixara Lisboa, fugindo dos exércitos de Napoleão que haviam invadido...

A vovó pianeira

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Em março de 1808, a Corte portuguesa desembarcava no Rio de Janeiro. Deixara Lisboa, fugindo dos exércitos de Napoleão que haviam invadido Portugal. Na bagagem, arrumada às pressas, não foram esquecidos alguns pianos. Começava aí a história do piano no Brasil.

Com a família real e os pianos vieram, também, as danças europeias. Inicialmente, as valsas e as quadrilhas. Em seguida, chegavam os gêneros musicais que predominavam, em cada momento, nos salões da Europa: polca, mazurca, schottisch, habanera e tango.

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Com o decorrer do tempo, as danças importadas foram se misturando aos batuques nativos de origem africana dando origem ao tango brasileiro, ao maxixe e ao choro. Nessa mutação o piano teve papel relevante. Para o crítico musical Andrade Muricy:


“o piano foi rei e senhor exclusivo durante mais de um século. No mundo e no Brasil. Todas as casas tinham piano e este polarizava o interesse dos serões em família: tocava-se, recitava-se com fundo pianístico, dançava-se”


Em meados do século 19, o Rio de Janeiro, na visão do pintor e escritor Araújo Porto-Alegre, era “a cidade dos pianos”. A preferência massiva pelo instrumento não se limitava apenas à sede do império, disseminava-se por todo o país.

Na então Província da Paraíba o piano, também, estava presente, como se pode ver em anúncio que Frederico Beuttenmuller fez publicar, no dia 5 de outubro de 1861, no jornal A Regeneração, editado na Cidade da Parahyba.

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Na virada do século 19 para o 20, surgiram no Brasil, de forma destacada, os pianeiros, como eram chamados os pianistas profissionais que ocupavam várias funções: demonstradores em estabelecimentos que vendiam partituras, encarregados de fornecer a música para bailes, festas, espetáculos, e, na época do cinema mudo, tocavam nas salas de espera e durante a exibição dos filmes.

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Embora alguns queiram vincular, pejorativamente, o termo pianeiro a uma execução do piano sem muito rigor ou com deficiência na técnica pianística, não era esse o entendimento do respeitado musicólogo paraibano Baptista Siqueira. Esses pianeiros, em sua grande maioria, sabiam ler e escrever música e, alguns deles, tinham refinadíssima técnica, como era o caso do pianista e compositor carioca Ernesto Nazareth. Para Baptista Siqueira, os pianeiros daquele período faziam verdadeiros malabarismos para que o seu instrumento soasse, às vezes, como se fosse uma pequena orquestra, exigência das funções que exerciam e dos ambientes onde se apresentavam.

No Nordeste brasileiro, seguindo a vereda que fora desbravada, no final do século 19, pela maestrina, compositora e pianeira carioca Chiquinha Gonzaga, surgiu, também, nas primeiras décadas do século 20, uma respeitada pianeira e compositora, a pernambucana Amélia Brandão Nery.

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Amélia Brandão Nery, 1930 Rev. Fon Fon
O relato da trajetória dessa grande instrumentista será baseado, na sua maior parte, no depoimento “Tia Amélia Uma Jovem Pianista pretende chegar, tocando, aos 100 Anos” que ela deu, em fevereiro de 1981, ao jornalista paraibano José Nêumanne Pinto, então no Jornal do Brasil. Na época deste depoimento, Amélia Brandão, então com 84 anos, acabara de gravar o último dos seus discos. Naquela ocasião, tinha 10 netos, 10 bisnetos e já era trisavó.

Nascida em Jaboatão, em 1897, Amélia começou a estudar piano aos 5 anos de idade. Logo cedo, revelou grande aptidão para a música. Aos 12 anos, já ensaiava as suas primeiras composições. A mãe, exímia pianista, e o pai, músico amador, projetavam para ela uma carreira de concertista. Mas, aos 17 anos, Amélia casou com um fazendeiro local e se rendeu às imposições familiares patriarcais vigentes à época, O marido a proibiu de seguir seus estudos de piano e de se apresentar em público. Foi morar em uma fazenda e limitava-se a tocar e mostrar suas músicas apenas em saraus caseiros.

Quando Amélia Brandão ainda não completara 25 anos de idade, o seu marido faleceu. Os negócios da fazenda haviam fracassado e ela, mãe de três filhos, teve que, de repente, assumir o sustento da família. E foi pensando em sobreviver utilizando as habilidades que tinha com a música que Amélia se mudou para o Recife.

Na capital pernambucana, apesar do preconceito existente na época em se ter uma mulher atuando como instrumentista profissional, Amélia Brandão logo se destacou no meio musical da cidade, sendo contratada pela Rádio Clube de Pernambuco e passou a atuar como pianista e na direção da orquestra do Ideal Cinema, no bairro de São José. Começou a fazer trabalhos como folclorista e compunha em vários gêneros, inclusive marchas carnavalescas, podendo ser considerada como uma compositora pioneira nessa modalidade.

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Em 1930, em viagem ao Rio de Janeiro, Amélia Brandão participou de vários recitais que obtiveram grande receptividade do público. Decidiu, então, deixar o Recife e se mudar para o Rio. Por essa época, foi convidada por um conterrâneo a tocar para Ernesto Nazareth. E é a própria Amélia quem conta a José Nêumanne:


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“Naquele tempo ainda não existia ainda o termo chorinho, mas as músicas eram conhecidas como ‘tango’. Toquei seis ‘tangos’ de Nazareth e ele ficou maravilhado”.
“Eu adoro Ernesto Nazareth. Sempre gostei de música popular, mas meu pai achava que eu deveria me especializar em música clássica. No entanto ele deixava que eu tocasse Nazareth, pois até mesmo reconhecia que suas peças são muito difíceis em termos de execução”.


Com a experiência já adquirida com o folclore, que ela “sempre preferiu como tema fundamental de suas peças musicais”, Amélia intentou uma nova empreitada:


“Eu estava no Rio quando li a notícia de que o Presidente Getúlio Vargas ia viajar para o Norte. Achei que era uma oportunidade incrível de tocar para ele. Não teria essa oportunidade no Rio. Escolhi Teresina. Fui a Pernambuco, consegui uma carta de apresentação do Governo de meu Estado [...] Toquei músicas gaúchas e Getúlio gostou muito. Perguntou-me o que eu queria [...] Pedi-lhe recomendação para tocar em outros países do mundo. O Itamarati me recomendou [...] Acompanhada de minha filha, passei cinco anos no exterior e conheci 21 países”.


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De 1933 a 1938, Amélia se apresentou, pelas Américas, em 324 cidades. Tocava piano e acompanhava a sua filha Silene, que cantava e dançava músicas baseadas no folclore brasileiro. Nessa longa viagem, a pianista se deparou com aventurosas passagens, como a da deflagração de uma revolução no Peru enquanto ela se apresentava em um teatro. Apesar desses contratempos, em todos os países Amélia e a sua música eram recebidos com caloroso carinho. No Chile, a poetisa Gabriela Mistral lhe dedicou um verso em um jornal. Ao passar por Santiago, Pablo Neruda “encantou-se ao conhecê-la”. Os dois escritores chilenos que, anos depois, receberiam o Prêmio Nobel de Literatura. Na República Dominicana, a hospitalidade foi tanta que Amélia ficou por lá quase dois anos. Nos Estados Unidos, participou de um programa especial de rádio dedicado a ela. O périplo continental era noticiado, com merecido regozijo, pelos jornais de Pernambuco, como mostra essa manchete do Jornal de Recife, de 10.09.1938:


“A obra de puro americanismo, realizada nas tres Americas, por Amelia Brandão e Silene, artistas de Pernambuco – verdadeira consagração continental”.


De volta ao Brasil, Amélia Brandão interrompeu sua carreira profissional. Morou um tempo no interior de São Paulo e depois se mudou para Goiás, sempre acompanhando a sua filha Silene de Andrade, que havia casado. Foi em Goiânia, em 1953, que a cantora Carmélia Alves, em apresentação na cidade, encontrou a compositora que, então, dava aulas de piano, e era conhecida como Tia Amélia. Surpreendida com a perícia de Amélia no instrumento, Carmélia convenceu a pianista a ir para o Rio de Janeiro.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Tia Amélia foi contratada pela boate “Clube da Chave”, que tinha como clientela artistas, jornalistas e intelectuais, como Humberto Teixeira, Vinícius de Moraes e Oscar Niemeyer. O impacto das apresentações de Tia Amélia na casa é descrito, por Brutus Pedreira, numa deliciosa crônica, publicada na revista Manchete:


“Foi numa sexta-feira [...] às tantas da madrugada [...] meu desejo era, mesmo, sair de mansinho e ir para casa, dormir um sono comprido [...] Senhoras e senhores, temos aqui a tia Amélia que vai tocar piano [...] O estridor de aplausos fez levantar, de uma mesa ao lado, uma senhora robusta, de cabelos brancos, simpaticíssima [...] Que iria tocar? Na certa um Chopin pletórico [...] Resignado, aguardei. Levei um susto: do piano, sem aviso prévio, veio um chorinho tão sapeca, buliçoso e desmandado que foi sacudindo o sono dos meus olhos”.


O retorno de Amélia Brandão, agora com o nome de Tia Amélia, às atividades profissionais foi um estrondoso sucesso. Um dos seus maiores admiradores era o poeta Vinícius de Moraes, que chegou a dar títulos a vários choros da compositora. Vinícius também a saudou na crônica “A Benção Ti’Amélia”:


E eu vos direi, no entanto, que para ouvi-la eu percorreria facilmente um continente [...] Pois a verdade é que Tia Amélia é uma ressurreição de Chiquinha Gonzaga com bossas novas [...]
Os choros de Tia Amélia tocarão não só àqueles ligados à saudade de um tempo de que se fez música assim, como o da gente mais nova, em que as influências estrangeiras e as sofisticações do momento vão destruindo as características brasileiras mais tradicionais. Pois os choros de Tia Amélia transmitem as coisas mais profundamente simples: as coisas do coração.

O reingresso de Tia Amélia no mundo artístico do Rio de Janeiro se deu de forma plena. Gravações de vários discos, programas semanais exclusivos no rádio e na televisão (“Tia Amélia, suas histórias e seu piano antigo”), participações em shows, espetáculos e uma nova safra de composições.

Foi a fase de maior destaque da pianista e compositora de Jaboatão, período que encerrou em meados dos anos 1960, quando ela decidiu retornar para Goiânia. Um véu de silêncio voltou a cobrir o nome de Tia Amélia.

Em 1976, um novo formato de espetáculo musical, criado por Hermínio Bello de Carvalho, apareceu nos finais das tardes no Rio de Janeiro, era o Projeto Seis e Meia, depois transformado no Projeto Pixinguinha. Eram shows, com ingressos baratos, que uniam artistas jovens a nomes já consagrados que estavam fora do circuito dos espetáculos. E, em uma das primeiras duplas programadas para o Projeto ressurgia a já octogenária Tia Amélia em um show em que dividia o palco com o sambista João Nogueira. Foi uma das duplas mais aplaudidas no Projeto.

Esse renascimento artístico de Tia Amélia, embora com reduzida intensidade, o que era compreensível pela sua idade à época, motivou, mesmo assim, a gravação do seu último disco (A Benção, Tia Amélia), pela gravadora Marcus Pereira. José Ramos Tinhorão, crítico conhecido pelo seu conservadorismo, mas também pelo rigor nas suas opiniões, assim se expressou, analisando a obra das “três mulheres herdeiras,
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cada uma a seu modo, do velho estilo tradicional dos velhos pianeiros vindo do século XIX: a pernambucana Amélia Brandão, a Tia Amélia, a carioca Carolina Cardoso de Meneses e a paulista Lina Pesce”:


“da tradição de uma das pioneiras criadoras do próprio estilo, a maestrina Chiquinha Gonzaga, a mais imbuída do espírito de época é certamente Tia Amélia [...] que conseguiu captar toda pererequice e malícia saltitante dos pianeiros mais malandros. Um toque a que só chegavam os especialistas em tocar para dançar [...] Assim, quando se ouve o som atual de Tia Amélia, pode-se dizer que é toda a história do piano popular brasileiro que soa em sua interpretação”


Na entrevista que deu a José Nêumanne Pinto, dois anos antes da sua morte, em 1983, Tia Amélia confessou: “vou viver mais de 100 anos, porque não posso, não quero, não gosto de morrer”. Era a pura verdade. No início de 2020, praticamente um século depois que Amélia Brandão iniciava, no Recife, a sua carreira profissional, o pianista capixaba Hércules Gomes manteve viva a música da grande pianeira e compositora pernambucana. Saiu pelo selo SESC, de São Paulo o CD “Tia Amélia para Sempre”, em que Hércules toca, em solo ou com o acompanhamento de renomados músicos, como o clarinetista Nailor Proveta e o bandolinista Izaías, 14 músicas da imensa obra autoral de Tia Amélia, que chega a 200 peças instrumentais. Agora, as velhas, as medianas e as novas gerações já podem ter acesso à grande música de Tia Amélia, pelos mais atualizados formatos, inclusive as plataformas de streaming, como o Spotify.


Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista

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  1. Ótimo artigo. Você sempre me revelando novos escaninhos da música. Confesso que nunca havia ouvido falar em Tia Amélia.
    À parte as revelações, gosto, particularmente, desses recortes de jornais de um passado remoto relatado em tipos.

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  2. Ótimo artigo. Você sempre me revelando novos escaninhos da música. Confesso que nunca havia ouvido falar em Tia Amélia.
    À parte as revelações, gosto, particularmente, desses recortes de jornais de um passado remoto relatado em tipos.

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