Já nascemos com esse medo: o da finitude. E passamos a vida a escamotear o tema; fugindo dela. Talvez estejamos fugindo da vida também?...

A morte chega cedo

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Já nascemos com esse medo: o da finitude. E passamos a vida a escamotear o tema; fugindo dela. Talvez estejamos fugindo da vida também? Talvez. Só sei que por volta dos 10 anos vivi minha primeira experiência da perda. O grande medo, o da perda da mãe quando criança. Morria a mãe de uma amiga de colégio — Tereza, hoje Saldanha. Chorei como se fosse a minha, que gracias a la vida ainda vive, com mais de 90. A partir daí sempre soube que "ela" existia.

No início deste mês comemorou-se o dia dos mortos. “Flores para los muertos”, ouvia Blanche Dubois, numa cantoria premonitória, em "Um bonde chamado desejo". O personagem Eveline, do conto homônimo de James Joyce, também ouviu, pelas ruas de Dublin, um órgão tocando o som melancólico que anunciava a morte da sua mãe. E eu, pobre mortal, daqui da minha realidade, a chorar os meus. Fui à praia levar meus Bougainvilles fúcsias para os mares do Bessa, lugar último do meu amor. Aproveitei as ondas para que também levassem quadrinhas para o meu pai Romero.

Coincidentemente, estava a estudar com os alunos o conto Death, da escritora inglesa Dorothy Richardson (1873-1957) que, segundo Virginia Woolf, inventou a frase psicológica do gênero feminino, criando assim um recurso literário que tentaria traduzir a consciência feminina. A romancista May Sinclair tomou emprestado a expressão do filósofo norteamericano William James para descrever a técnica literária de Richardson, que se denominaria de Fluxo de Consciência: cda imagem definida da mente é mergulhada e tingida das águas livres que flutua a esmo...

"Death" é um conto muito pequeno, uma miniatura assim da técnica de Richardson, que se esvai em fluidez e se mistura aos últimos dias de vida de uma mulher, concomitantemente ao colapso de sua consciência. Sua agonia, seus sintomas, sua dor misturam-se a lembranças de seu passado, suas ações, sua fé em Deus e de algum tipo de arrependimento. No final, ela vislumbra um jardim que talvez lhe dê a impressão de ser o paraíso...

O fluxo de consciência é demonstrado por sentenças curtíssimas. Mudanças abruptas de assunto, frases e pontuação ilógicos. Pouco a pouco, em slip slop, vamos por entre medos, solavancos, o rush da vida, segredos vindo à tona, "des-conhecimentos" de si e dos outros, descobertas, entregas, resignações e murmúrios.
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É tarde demais! A bíblia estava certa! Ah! Se cada momento fosse o último... ou o primeiro... Enquanto existe vida tem-se esperança! Ouse! Só somos nós mesmos na infância e na morte! A luta. A escuridão. A Solidão. Sozinha. E eis que uma macieira de pronto floresce.... singularmente... iluminadamente...

Novamente me defronto com outro texto literário, "As Neves do Kilimanjaro", do norteamericano Ernest Hemingway. Outra estória sobre alguém que está prestes a morrer. Um dos seus contos mais longos e mais famosos da sua escrita enxuta, seca e certeira — Como se acertasse um alce. Hemingway, caçador exímio. Pescador. O velho e o Mar! Bon Vivant! Meia Noite em Paris! Hemingway pessoalmente também se entregou ao tiro dos rifles, repetindo, assim, uma tragédia familiar. Seu avô também acertou.

Gostava de rifles. Não aguentou a ideia do sofrimento da espera, assim como seu personagem Harry, que, por entre as savanas e com uma perna ferida (Fera!) resmungava, pensava na vida, na morte, nos seus escritos, na guerra, na natureza humana e esbravejava com sua mulher:


“Não era tanto pelo fato de mentir, mas porque não havia verdades a dizer... Somos todos moldados pelo que fazemos... Neste preciso instante, porém, deu-se conta de que caminhava para a morte... Essa sensação veio-lhe repentinamente, não como uma enxurrada ou uma lufada de vento, mas como algo originário de um vácuo instantâneo... que ele associou de pronto com a imagem da hiena cruzando a pequena distância. Então é assim que as pessoas morrem? Entre murmúrios que elas próprias mal ouvem? Harry sempre desprezara os que se deixavam arrasar. Não era necessário gostar de alguma coisa para compreendê-la. Qual a companhia ideal?... quando alguma coisa dura tempo demais, ou chega tarde demais, não se deve imaginar que as pessoas sejam as mesmas...”

E por entre contos, rifles, flores, savanas, órgãos, memórias e saudades, nesta semana dos mortos pensei em tantas coisas. Quando meu pai adoeceu e morreu, há 20 anos, não resisti, e quase virei estrela também. A impotência me tomou conta. Depois entendi, a duras penas, que aquela era sua trajetória, já não poderia medir forças com a imponderabilidade da vida. Resignei-me.

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Tempos atrás, fui posta a novas provas. O abismo da má notícia. A morte eminente. O que se faz nessas horas? Como se reage? Assim como no conto de Richardson, minha vida passei a limpo, das cadeiras da sala de visitas, dos corredores, do jardim, da taça de vinho quando não dava para aguentar... Não se sabe como ajudar, como se despedir, a urgência da hora. O sentir... lágrimas... coração que bate... Tum Tum Tum... o dele e o meu. Seu olhar primeiro de espanto, de revolta, de desespero, para depois se conformar e entregar-se à revelia do que não tem nome, do que não tem perdão. Não há o que fazer. Médicos, visitas, exames, correrias, boas notícias. Sim, vai dar tudo certo. Pouco tempo? Quanto? Pouco... corre corre corre... No meio de tudo, uma distância abismal entre a vida e a morte. A distância de uma gota de sangue. Somente. O que dizer? Assunto algum é assunto. Só a vida importa. Não tem erro! A morte. Ninguém a conhece! Todos a temem. Olha lá a sua vida secreta vindo à tona... A vida sobrepondo-se à morte! Slip slop!

Quando finalmente é chegada a hora, não sabemos. É sempre antes. É sempre inusitado. É sempre misterioso ou óbvio. Ou desconexo. Ou fora de hora. Ora, pensei que estava tudo bem, não fiz ainda, não disse ainda, não pensei ainda, não me preparei, ainda não. Nada. Foi-se. Um suspiro. O último. A morte não acontece romanticamente como nos livros. Como a morte dos poetas, perdoou por te traíres! Mil perdões!
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Assim como Hemingway também fiquei impaciente. Surpreendentemente inerte. Numa savana hospitalar. Num limbo estrelar. Confusa, permutava minhas ideias com sopas, chás e tra lá lás; me distraia nos corredores por entre gemidos e silêncios. O meu próprio. Assim como Harry, também vi gafanhotos e finalmente as neves do Kilimanjaro. Compreendi, assim como ele, que era para lá que íamos. Para o branco infinito das montanhas sonhadas. Ou não.

Para ilustrar melhor o desfecho do assunto, o “Funeral Blues” de W. H. Auden:

“Parem todos os relógios, desliguem o telefone, Evitem o latido do cachorro com seu osso suculento, Silenciem os pianos e com tambores lentos Tragam o caixão, deixem que o luto chore. Deixem que os aviões voem em círculos altos Riscando no céu a mensagem Ele Está Morto, Ponham gravatas beges no pescoço dos pombos brancos do chão, Deixem que os guardas de trânsito usem luvas pretas de algodão. Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste, Minha semana útil e meu domingo inerte, Meu meio-dia, minha meia-noite, minha canção, meu papo, Achei que o amor fosse para sempre: Eu estava errado. As estrelas não são necessárias: retirem cada uma delas; Empacotem a lua e façam o sol desmanchar; Esvaziem o oceano e varram as florestas; Pois nada no momento pode algum bem causar.”



Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora

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