Fausto Cunha escreveu que Augusto dos Anjos foi salvo pelo povo. Ele se referia ao entusiasmo e à fidelidade do homem comum ao poeta, em c...

Augusto dos Anjos e o povo

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Fausto Cunha escreveu que Augusto dos Anjos foi salvo pelo povo. Ele se referia ao entusiasmo e à fidelidade do homem comum ao poeta, em contraste com a má-vontade de certos críticos que não teriam compreendido o significado do “Eu” para a literatura brasileira. De fato, o povo amou Augusto desde o início, e o declamou e vem declamando nos mais diversos rincões deste país. Sobretudo no interior, tem sempre alguém cujo avô ou o pai possui um exemplar do único livro do poeta, e o recita em momentos de solidão ou de congraçamento familiar.

Se é verdade, no entanto, que Augusto dos Anjos foi salvo pelo povo, não é menos certo que é preciso, também, salvá-lo... do povo. Antes que me acusem de elitismo, explico: Augusto fascina o leitor comum justamente pelo que há de superficial, e às vezes mesmo de ruim, em sua poesia. Poucos autores no Brasil incitam como ele ao patético desmesurado, ao dramatismo lacrimoso e à pseudoerudição travestida de verdade científica e filosófica. A estranheza de suas imagens e a musicalidade dissonante de seus versos tendem a encantar esse tipo de admiradores, que degustam a obscuridade do poeta sem maiores preocupações intelectuais. Para eles, é suficiente que Augusto seja o que parece. Compreendê-lo, discuti-lo seria matar-lhe um pouco o encanto.

Meu contato com Augusto dos Anjos se deu por meio de um desses admiradores ao mesmo tempo ingênuos e exaltados. Foi na época do ginásio. Um colega de Liceu sabia de cor vários de seus poemas e, vez por outra, os dizia para nós. Preferia aqueles que lhe mobilizavam o potencial cênico, despertando-lhe gestos e trejeitos com os quais procurava sublinhar cada verso recitado.

Assim, para declamar “Versos íntimos” ele tinha primeiro que acender um cigarro. O poema, a seu ver, não era apenas um texto em que o poeta exprimia o desencanto com a ingratidão humana; era um roteiro que devia ser dramatizado. E tal dramatização não se detinha sequer diante das referências naturalistas tão comuns no paraibano. Ao chegar no “Escarra nessa boca que te beija!”, meu colega fazia seguir a palavra ao ato – e ai de quem estivesse por perto. Podia receber um respingo da sua saliva indignada.

Esse exemplo um tanto caricato talvez explique o que se quis dizer com salvar o poeta... do povo. Significa valorizá-lo por suas virtudes propriamente poéticas (pois Augusto nunca foi nem pretendeu ser outra coisa), deixando de lado o que de pior se tem associado e ele: o exagero sentimental, as idiossincrasias teratogênicas, o folclore biográfico e um endeusamento ingênuo que, em razão de imagens mal compreendidas, procura ver em Augusto um gênio antecipador de guerras e cataclismos.

A guerra para a qual sua obra aponta desenvolve-se em seu psiquismo torturado e reflete o embate, próprio das naturezas melancólicas, entre as forças do instinto e os freios da repressão. Poucos, como ele, exprimem com tanto vigor a dualidade barroca que, historicamente, é um dos mais característicos reflexos do sentimento de culpa.

Mas a verdade é que o povo o ama e, à sua maneira, o compreende. Augusto concilia sentimentalidade e estranheza, simplicidade e um eruditismo que sacia no leitor desarmado o seu desejo de uma transcendência redentora. Da sua poesia destila-se, paradoxalmente, um pessimismo que encanta os céticos e uma religiosidade cujo fundamento é a identificação com a figura de Cristo.

Nada mais ilusório do que a restrição individualizante sugerida pelo título do seu livro. O Eu de Augusto não se limita à expressão do lirismo; amplifica-se num Nós que parece refletir os padecimentos e as esperanças de todos os homens. Talvez mais do que à musicalidade dos seus versos ou à estranheza das suas imagens, deva-se a essa capacidade de sintonia universal o seu poder de falar ao homem simples. Para este, o poeta não é apenas autor. É também personagem de uma tragédia que, a exemplo de “Édipo Rei”, expressa a luta do indivíduo contra alguns de seus mais profundos e inconfessáveis desejos.

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  1. Parabéns👏👏👏👏👏👏
    Chico Viana.. brilhante texto!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Beleza, Chico Viana. O povo, realmente, ligou-se fortemente ao grande poeta. E penso que o fator determinante foi a sua poderosa sonoridade, pondo-se em segundo ou terceiro plano qualquer coisa como sentido. É como se Augusto dos Anjos tivesse algo do Zé Limeira, justamente chamado de O Poeta do Absurdo. Os dois têm textos que são como passagens de um trem. Às vezes eles me lembram imagens da infância, com bondes passando nas ruas, à noite, ribombando e soltando faíscas pela fricção das rodas nos tilhos e, em cima, de sua armação para os cabos elétricos.

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    1. Bela imagem (visual e sonora), Solha. Eles são como trens que nem sempre ficam nos trilhos mas nunca erram o percurso.

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    2. Bela imagem (visual e sonora), Solha. São como trens que vez por outra saem dos trilhos mas nunca erram o percurso.

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  3. Dramaturgia pura, amplificado esmero de quem se nutria em vociferar Sheikespiere, Goethe, Shiller, et alli, em os respectivos idiomas de implícitas Personas dramática. Teatro Vivo. Libreto. Cena aberta, ensaios absorto, em a eloquente pessoa/ ator Dos Anjos, conceptual, sempre a levitar. Segundo o testemunho de o seu prefaciador, Oris Soares, presencial. Caule, O Carvalho, desprovido, aquela época, em os seus cotidianos; bucólico sob frondoso engenho Pau D'Arco, ou citadino à Rua Nova - sem phonografo nem streaming. Seria capaz de apostar, o Bardo Augusto lia partituras, no ato de ele subscrever, O monólogo de uma sombra, com análogo compasso airoso d'Abertura da nona sifonia - qual aquele outro - Devorar.

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  4. Bravo! Chico Viana faz uma redescoberta da poética de Augusto dos Anjos quebrando paradigmas velhos e equivocados de que o poeta do Eu fora salvo pelo povo, quando na verdade há uma recepção crítica que o propaga tanto à fortuna crítica quanto à catarse do leitor e do receptor de sua mensagem poética por meio de sua fonética universal consagrando-o.

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