A revista semanal “O Cruzeiro” foi um dos maiores sucessos editoriais do Brasil. Criada, em 1928, pelo jornalista paraibano Assis Chateaub...

O Amigo da Onça

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A revista semanal “O Cruzeiro” foi um dos maiores sucessos editoriais do Brasil. Criada, em 1928, pelo jornalista paraibano Assis Chateaubriand (Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, 1892-1968) alcançou, nos anos 1940, uma circulação média de 300 mil exemplares, quando a população do País era de 50 milhões de habitantes. Em 1954, a edição com o noticiário da morte de Getúlio Vargas chegou a vender cerca de 720 mil revistas. “O Cruzeiro” era o mais importante veículo do grande império de comunicação construído por Chateaubriand, que se tornou um dos brasileiros mais poderosos, ao ponto do jornalista Fernando Morais ter dado a sua biografia o título de “Chatô, o Rei do Brasil”.

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DigArt
A partir de meados de 1943, a principal atração de “O Cruzeiro” passou a ser não mais as suas reportagens sensacionalistas, ilustradas pelas fotos de competentes fotógrafos como Jean Manzon e Luiz Carlos Barreto, mas a página da publicação onde aparecia uma charge tendo como protagonista uma figura que, pela sua identificação com os diversos tipos de leitores da revista, incorporou-se, de imediato, à galeria das figuras populares do País: o Amigo da Onça.

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O Cruzeiro
O desenho do personagem foi criado por um pernambucano de 19 anos, recém-chegado ao Rio de Janeiro e que conseguira um emprego de contínuo em “O Cruzeiro”. Chamava-se Péricles de Andrade Maranhão e assinava os seus desenhos simplesmente como Péricles.

Segundo o jornalista e escritor Ruy Castro o “verdadeiro inventor do personagem foi o jornalista Leão Gondim de Oliveira, diretor de “O Cruzeiro”, que criou a sua estrutura psicológica e pediu a vários artistas que o desenhassem – entre outros Augusto Rodrigues. Nenhuma das tentativas o satisfez. E, de repente, quando Leão já pensava em abandonar a ideia, um contínuo da revista mostrou-lhe um esboço que tinha feito, nada menos do que Péricles”.

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Péricles de Andrade MaranhãoO Cruzeiro
Para o grande pesquisador e escritor cearense R.(Raimundo) Magalhães Junior o nome do personagem Amigo da Onça havia sido tirado de um causo de curso popular:

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“A expressão nasce da história de um caçador mentiroso, que referia que, sem armas, fora acuado por enorme onça, de encontro a uma rocha, ao lado da qual não havia uma árvore, em que subisse, nem um pau ou pedra com que se defendesse. Contudo, escapara, dando um grito tão grande que a onça fugira em pânico. Um circunstante declarou que isso não poderia ser verdade e que, nas condições descritas, ele teria sido inevitavelmente devorado. Donde a pergunta indignada do mentiroso. Afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?”

O Amigo da Onça desenhado por Péricles era feio, baixinho e quase sempre vestido num impecável summer jacket branco. O personagem obteve tanto sucesso que foi transformado em bibelôs, peças de geladeira, colocado em quadros afixados em botecos, mercearias, barbearias e oficinas mecânicas, com a sua conhecida frase: “Fiado só Amanhã”. O Amigo da Onça foi uma das raras figuras de charges no País a ter vida além daquela do papel impresso.

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ArteMiniatura + O Cruzeiro
Nenhum dos grandes artistas gráficos brasileiros, J. Carlos, Klixto, Nássara, Belmonte, Millôr Fernandes, Ziraldo ou Henfil, em qualquer tempo, conseguiu atingir com seus desenhos a aceitação popular que Péricles obteve com o Amigo da Onça. Para Ruy Castro, o Amigo da Onça foi o “maior personagem do cartum brasileiro”.

As intervenções do Amigo da Onça nos quadros desenhados por Péricles tinham como principal característica sempre deixar o seu interlocutor em situação difícil ou embaraçosa. Ruy Castro indagava, em artigo publicado há quase 40 anos: “Será possível amar um mau-caráter?”. E ele próprio respondia:

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“O Amigo da Onça, ‘criação imortal de Péricles’, provou que sim, Em toda a história do cartum brasileiro nunca houve um personagem mais insensível, cruel e oportunista – nem mais amado. De 1943 a 1961 a página semanal mostrando o que ele aprontava era a primeira a ser lida na poderosíssima revista ‘O Cruzeiro’ [...] Pelos padrões de hoje, o humor do Amigo da Onça é ingênuo – mas a culpa não é de Péricles, e sim da realidade, que nos tornou a todos mais cínicos [...] Péricles teria acompanhado a realidade e a saga do Amigo da Onça continuaria hoje tão ferina como quando surgiu.”

A popularidade que o personagem de Péricles alcançou e a dimensão da sua inserção no imaginário cultural do País podem ser avaliadas, atualmente, pelo registro da locução “amigo da onça”, com o significado que tinha nos cartuns de Péricles, como verbete incluído nos nossos principais dicionários, como o Houaiss, representando “amigo falso, hipócrita, infiel”.

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PériclesO Cruzeiro
Durante dezesseis anos, semanalmente, o Amigo de Onça desenhado por Péricles se fez presente nas páginas de “O Cruzeiro”. Péricles se tornou famoso e ganhou muito dinheiro, que ele se encarregava de dissipar, irresponsavelmente, nos bares do Rio de Janeiro.

No último dia do ano de 1961, Péricles chegou ao seu apartamento em Copacabana, fechou portas e janelas e abriu a torneira do gás. Escreveu duas cartas, uma delas para a sua mãe e a outra sem destinatário:

“A quem interessar possa, São 14h30min do dia 31 de dezembro de 1961. Estou completamente sóbrio e não desejo culpar ninguém pelo meu gesto. Apenas, estou me sentindo profundamente só. Os amigos, se assim posso chamá-los estão em suas casas junto a suas famílias, o que não acontece comigo, pois a única família que possuo — minha querida mãe e irmã — está em Recife [...]”.

O desenhista que, por mais de uma década e meia, com seu personagem marcante, fez a alegria do Brasil era um homem solitário e depressivo. Mas teve o cuidado, nesse trágico instante final, de adotar precauções que não seriam típicas do Amigo da Onça. Deixou pregado na porta de entrada do apartamento um aviso: “não risquem fósforos”.

Após a morte de Péricles, os cartuns do Amigo da Onça continuaram a ser publicados em “O Cruzeiro”, com o subtítulo “criação imortal de Péricles”, desenhados por Carlos Estevão, Appe e outros, mas os substitutos de Péricles não conseguiram dar ao personagem a malícia que era obtida nas situações criadas pela pena do grande desenhista pernambucano.

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  1. Excelente!!! Realmente, O Amigo da Onça marcou aquela época. E, claro, a revista O Cruzeiro, com o Pif-Paf do Millôr - que assinava Vão Gogo, com o Dr. Macarrão, o Figurão, do Carlos Estêvão, com as aulas de defesa pessoal do Helio Gracie ( que me valeram duas vezes ). E olha que havia sempre, em minha casa - com minha mãe e as duas irmãs costurando e conversando o tempo todo - Vida Doméstica, Alterosa, Seleções, Life em espanhol, A Revista do Rádio, Eu Sei Tudo - fora as minhas histórias em quadrinhos! O Cruzeiro, realmente, imperava. E o Amigo da Onça - com que me deparei tantas vezes na vida real.

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  2. Gostei bastante do texto. Nos anos 70, ainda criança, pelas páginas de O Cruzeiro, conheci "O Amigo da Onça", já na fase após Péricles, uma vez que nasci em 1966. Não entendia bem as tiradas, mas um ou outro cartum foi me dando noção de uma espécie bem peculiar de gente que abunda por aí, com gestos e palavras aparentemente lhanos, mas atentos exclusivamente às suas conveniências mais estreitas e imediatas. No finalzinho daquela década, a música "Amigo da Onça", de Sílvio da Silva Júnior e Aldir Blanc, lançada no LP 'Bons Tempos, hein?', do MPB4, deixou evidente quem era esse tipo de figura e como elas vicejam em certos tipos de sociedade.
    OBS - Tenho um bibelô do Amigo da Onça.

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  3. Mais um excelente trabalho de pesquisa do Flávio Brito, resgatando parte da memória do Brasil no século XX.
    Lembro-me muito bem de O Cruzeiro, com as suas reportagens sensacionalistas. Numa delas, sobre um médium do Ceará, se não me engano, aprendí o significado de "ectoplasma". Causou asco.
    Havia uma sessão de modismo chamada "As Garotas do Alceu," acho. Referia-se ao desenhista Alceu Penna.
    Flávio sempre me traz boas recordações. Parabens!

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  4. Excelente!! Parabéns Flávio!! Boas recordações para todos nós.

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