"Tudo que é sólido desmancha no ar” é uma frase famosa extraída do Manifesto Comunista de Marx e Engels. E é também o título d...

Eles desmancharam no ar

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"Tudo que é sólido desmancha no ar” é uma frase famosa extraída do Manifesto Comunista de Marx e Engels. E é também o título do célebre livro do norte-americano Marshall Berman, um extenso ensaio sobre a modernidade. Aqui não vou comentar o contexto original da frase nem a obra ensaística de Berman. Faltam-me espaço e ciência para tanto. Ficarei apenas com o sentido comum da mesma, despindo-a de quaisquer significados político-filosóficos, ficando, portanto, no rés do chão de sua quase literalidade, ok? Pois bem.

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Gaurav D Lathiya
Começo com uma pergunta óbvia que se impõe com a força das obviedades. Será mesmo que tudo que é sólido desmancha no ar? Ou há coisas que resistem e não se desmancham nunca – ou quase nunca? Sob o ponto de vista da eternidade (sub specie aeternitatis), é bem possível que todas as coisas um dia terminem por desmanchar-se no ar, desde as estrelas e as pirâmides do Egito até o derradeiro vestígio da passagem dos homens sobre a terra. Tudo virará pó; “do pó viemos, ao pó voltaremos” e estamos conversados. Chico Viana, numa conversa cuja lembrança, para ele, certamente já se desmanchou no ar, confessou-me sua desconfiança de que chegará o dia em que ninguém saberá quem foi Sócrates ou Sartre, pois nada terá restado de tudo que hoje parece-nos tão sólido e até eterno. É bem possível, é bem possível, digo eu.

Pensemos humildemente, por exemplo, no III Reich de Hitler e na U.R.S.S. de Lenin e companhia, ambos feitos para durar pelo menos mil anos. O primeiro desmanchou-se no ar em meros doze anos, de 1933 a 1945, e o segundo, mais resistente, em apenas sete décadas, ou seja, praticamente nada em termos históricos. Boas lições, sem dúvida, para historiadores e leigos em geral. Mas isso acontece não só com os governos, as ideologias e estruturas de poder semelhantes; acontece também com pessoas, líderes, carismáticos ou não, e até com indivíduos comuns, cada qual na dimensão que lhe é própria. Tomei três nomes, um britânico e dois brasileiros, todos importantes, famosos e influentes ao seu tempo, hoje reduzidos a fumaça (ou quase), em comparação ao que já foram.

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Estátuas de Lênin, Stalin e outros líderes e pensadores marxistas foram demolidas, removidas ou transformadas em pó em diversos lugares do planeta, após o colapso da União Soviética.
O primeiro é o ex-primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair. Ele governou de 1997 a 2007, mas, inicialmente, pareceu que ficaria mais tempo no poder. Trabalhista e jovem, sucedeu à era liberal-conservadora de Margareth Thatcher, após esta ter recuperado economicamente o RU. Beneficiando-se do legado recebido, renovou a política britânica com a pitada social típica do Partido Trabalhista, mas imprimindo-lhe nova feição (o novo trabalhismo). Prometia muito, no bom e no mau sentido, como todo político vitorioso. Mas tomou decisões na política externa que desagradaram profundamente o seu povo, notadamente o apoio incondicional aos EUA na guerra contra o terror.
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Tony BlairMirror
Os britânicos não queriam saber de entrar em novas guerras, fosse qual fosse a razão. Em meros dez anos, desmanchou-se no ar o prestígio de Blair, que tinha despontado como nova liderança não só no âmbito interno do Reino mas também internacionalmente. Seu partido perdeu as eleições, ele perdeu o cargo e simplesmente desapareceu da cena política. Ninguém fala mais nele. Acabou-se.

O segundo é um político nosso, rapaz oriundo de uma das mais nobres linhagens políticas brasileiras, que deu um presidente da República apoiado por praticamente todos os brasileiros, o honrado Tancredo Neves. Seu neto e jovem assessor, de nome Aécio, desde o início foi visto como sua continuidade na política mineira e brasileira, com imensas e justas (até então) perspectivas pela frente. Deputado federal, senador, governador de Minas Gerais e candidato quase eleito à presidência da República na eleição de 2014. Teria certamente chegado lá, mais cedo ou mais tarde, não tivesse se envolvido em obscuro caso de corrupção passiva, até hoje não suficientemente esclarecido. Politicamente, perdeu todo o prestígio e toda a influência nacional que chegou a desfrutar. Sua queda desonrosa favoreceu o surgimento de Bolsonaro como liderança antipetista. Hoje, Aécio é apenas mais um no Congresso, baixo clero. Desmanchou-se no ar como voz e persona. Ninguém o vê nem ouve.

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Aécio NevesAg. BR
Finalmente, o terceiro, mas não o derradeiro, é o ex-juiz Sérgio Moro. De sua trincheira judiciária em Curitiba, o até então anônimo juiz federal começou a mandar gente graúda pra cadeia, por corrupção ativa e passiva. De empresários a políticos, passando pelos intermediários, o magistrado começou a fazer no Brasil o que na Itália se chamou de “Operação Mãos Limpas”, verdadeira varredura contra os corruptos de toda espécie. Virou herói. Celebrizou-se nacional e internacionalmente. Deu palestras e conferências, recebeu homenagens. Tal como o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, xerife do Mensalão, Moro, desbaratando o Petrolão, tornou-se naturalmente um presidenciável de peso. Era, para todos os fins, uma esperança. Mas aí... fez o que fez, sem falar no que no STF fizeram com ele. Não o estou julgando, até porque sua atuação até hoje não ficou muito clara. O fato é que de estátua de bronze virou fantasma. Diminuiu tanto de estatura, que, para ser visto agora, só com lente de aumento. Mas o eleitorado do
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Sérgio MoroAg. BR
Paraná deu-lhe uma chance de ressurreição: elegeu-o para o Senado. Poderá, quem sabe, tomar corpo novamente.

Esses fatos nos fazem pensar na precariedade de tudo, até das coisas mais sólidas. Outros tantos (e tantas) também desmancharam no ar, aqui e alhures. Gente como o ex-presidente Collor, José Dirceu, o médico Roger Abdelmassih, José Serra, Regina Duarte, a ex-ministra Zélia Cardoso de Melo e por aí vai. Tem para todos os gostos. Na quase totalidade dos casos, viraram vento por conta de seus próprios erros. Não podem nem culpar alguém. Seu único consolo é talvez pensar que, daqui a milênios, o mesmo acontecerá com Sócrates e Sartre. Mas aí por outros motivos, é claro. Cada qual se consola como pode.

As instituições, de todos os tipos (políticas, culturais, educacionais etc), também podem desmanchar no ar, ao longo do tempo. Com elas, o processo é mais lento, claro, mas é plenamente visível para qualquer observador mais atento. No caso delas, o desmanche tem a ver principalmente com a queda do nível intelectual e moral das pessoas que as integram e representam. Não é uma questão de elitismo, evidente, mas de simples mérito. Quando este é desconsiderado, em qualquer setor, é o começo do fim, não há escapatória. Os exemplos estão aí à vista.

PS: Após ver o resultado das recentes eleições, constatei (constatamos) que o PSDB, partido que representou a social-democracia no Brasil e tantas esperanças de liberdade e fraternidade, também, por culpa própria, desmanchou espetacularmente no ar.

Muito assunto, percebo, para os especialistas estudarem.

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