Dizem que o amor é traiçoeiro. Veste máscara de mil formas. O casal de corujinhas buraqueiras levava uma vida cheia de paz, na relva pert...

Quem sabe uma nova lua...

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Dizem que o amor é traiçoeiro. Veste máscara de mil formas.

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O casal de corujinhas buraqueiras levava uma vida cheia de paz, na relva perto do mar. Um universo rico, com dunas cobertas de vegetação, ao ar livre, sempre bem iluminado na tranquilidade das manhãs. Reluzentes no verão, úmidas no inverno, suavemente orvalhadas nos entremeios outonais e primaveris, formam um conjunto bucólico e prazeroso. Dá gosto só de olhar.

De rotina é costume nosso observá-las ao longo dos dias, principalmente pela manhã. O seu cuidado iminente, no olhar atento e na postura permanentemente observadora, como se o perigo estivesse sempre à espreita, nos infunde um receio solidário. O que faz com que a contemplação do envolvente cenário se estenda aos arredores potencialmente ameaçadores. Afinal, bichos diversos habitam a redondeza praiana, alguns ameaçadores de ninhos e filhotes.

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É um encanto a fidelidade conjugal que elas cultivam durante toda a vida, alternando-se na vigilância do buraco, na busca de comida e na proteção do lar-doce-lar. À presença de um intruso, seja um gato, uma cobra, carcará ou gavião, gralham mais do que um corvo, com estridência metálica capaz de rasgar a penumbra de qualquer noite.

Vez por outra, só se vê uma. Dizem que se alternam na tarefa de chocar. Até nisso são parceiras solidárias. Mas é curto o período em que aparecem sozinhas. Poucos mais, novamente estão juntas, acompanhadas de um ou dois filhotes, que, logo após a infância, ganham o mundo e vida própria, deixando o casal em paz, outra vez.

Assim é a pacata rotina das corujinhas buraqueiras, que adoram uma ribanceira à beira-mar. Feito sentinelas, levam a vida a contemplar o mundo, sob sol e chuva, ventania e tempestade, não arredam pé nem asa.

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Entretanto, dessa vez, há muitos dias, talvez semanas, só se via uma. Passou-se o tempo de uma suposta chocagem, e nada de aparecer a outra, com ou sem filhotes. Que teria acontecido?...

Não havia resposta, só esperança de que a última carga de ovos tivesse sido maior e, por isso, demandava mais tempo. Que nada. Só restava a solidão de uma única e contumaz sentinela a vigiar o reduto de ninguém além de si.

E à noite, fazia pena. Um piar mais sofrido insistia em quebrar o silêncio todo dia, durante boa parte das horas. Seria aquele canto um chamando pela outra? Uma esperança perdida querendo se encontrar nos ecos e mistérios do escuro? Sabe-se lá...

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E assim passaram-se mais dias, afastando-nos expectativas de um retorno da amada ou do amado companheiro. Ficamos a pensar se aquele canto já não era mais pela que se foi, e sim por outra com quem pudesse refazer um novo lar. Mas decerto era um canto de amor. De saudade ou de esperança, mas um canto de amor…

Deu-se então o inesperado. No início de uma tarde em que não mais a vimos. Sumira de vez. Teria ido atrás da outra ou em busca de um amor? Cansara-se da espera ou da própria esperança?

De repente avistamos, em cima de uma pedra, um gavião ou carcará. Comia algo morto, já às tripas, com apetite. Meu Deus, seria “ela”? Teria atraído-o com o canto persistente que varava dia e noite? Teria o piar de saudade esperançosa intuído o gavião a planejar o seu ataque?

E a tristeza invadiu a lembrança das corujas que avistávamos todo dia na relva iluminada. Que saudade! Que amor mais traiçoeiro que no canto provocou um destino tão cruel… Bem que eu disse no início que o amor é traiçoeiro. Mas a mente é muito mais. Quem quiser que se engane. Toda a imaginação só apontava o carcará como o predador fatal. Era a única explicação. Chamado pelo canto da presa solitária, teve tempo e certeza que aquela melodia lhe traria bom proveito.

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Mas que nada. À tardinha, pouco antes do crepúsculo se formar, chega ela e aterrissa no seu velho habitat. Que alegria ter de volta personagem tão querido! Mesmo desacompanhado, era ali o seu lugar.

O amor é traiçoeiro, não há como duvidar. Mas a mente é muito mais, pois nos fez acreditar que aquele carcará tinha sido o culpado. Mesmo que de outra vítima haja se aproveitado, não foi nossa corujinha dessa vez extropiada.

Que ela volte a piar nos ecos de outras noites. Quisera nova lua ilumine os caminhos de uma outra companheira pela trilha de seu canto. Canto triste, por enquanto. Mas quiçá não se demore tanto quanto vem tardando o retorno desse amor...


Germano Romero é arquiteto e bacharel em música

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  1. Gostei do texto, em que impressionam o rigor da observação, a delicadeza ao
    captar o sentimento das corujinhas e o bom andamento narrativo.

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