Conheço José Bezerra Filho desde os tempos imemoriais da hoje extinta Fundação Cultural do Estado da Paraíba (FUNCEP), quando esse órgão ...

Uma personalidade singular e plural

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Conheço José Bezerra Filho desde os tempos imemoriais da hoje extinta Fundação Cultural do Estado da Paraíba (FUNCEP), quando esse órgão do governo do estado instituiu o Concurso de Contos Geraldo Carvalho, numa justa homenagem ao ficcionista de “A Cravina Asfaltada”, que, apesar de recolhido a uma cadeira de rodas, exercia uma efetiva liderança junto aos poetas, artistas plásticos, dramaturgos, romancistas, contistas, enfim, junto a todos quantos respondiam pelas atividades artísticas da provinciana João Pessoa dos anos 1960 e 1970.

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Com o meu voto entusiástico, pois integrava a comissão julgadora, José Bezerra conquistou o segundo lugar do concurso com o conto “O Comício”, narrativa jocosa, espontânea, que bem refletia e reflete a maneira de ser desse meu amigo de algumas décadas: orgânica, visceral, um sujeito que se gasta de dentro para fora, não obstante tenha os seus momentos de profundo recolhimento. Quem obteve o primeiro lugar? Simplesmente não recordo, o que me faz remontar – guardadas as devidas proporções – ao Concurso de Contos Humberto de Campos, promovido pela Livraria José Olympio, no qual Guimarães Rosa obteve o segundo lugar com o livro “Sagarana”. E quem conquistou o primeiro lugar? Poucos sabem que foi Luís Jardim, com “Maria Perigosa”, com os votos de Graciliano Ramos, Dias da Costa e Peregrino Júnior. “Sagarana” foi sufragado por Marques Rebelo e Prudente de Moraes Neto.

A respeito da ficção de Bezerra, devo dizer que ela constitui um prolongamento de sua vida, ainda que não seja pela experiência vivida que uma obra ganha em qualidade, mas “pela experiência literária que o seu autor sabe lhe comunicar”. Daí a obra de Bezerra reivindicar, ao seu eventual exegeta, uma ênfase toda especial nas coordenadas biográficas que a perpassam, condição sine qua non para ela ser melhor avaliada em toda a sua extensão e plenitude. Aliás, autores existem que mantêm uma íntima relação com o que escrevem, cabendo-lhes – como o faz Bezerra -, para não soçobrar no mero biografismo, a tarefa de transfigurar a realidade através do sortilégio da linguagem.

O fulcro gerador de parte expressiva da obra de Bezerra, é o Cine Metrópole, já demolido, assim como também o foram, entre muitos outros, os cinemas Rex, Plaza, Astória, Jaguaribe, Santo Antônio e o Cine Brasil, sobre cuja matinê das moças, espécie de rito de passagem de toda uma geração que se iniciava no “cerimonial” da bolinagem, escrevi: abriam-se cortinas, / zíperes e braguilhas. // tinha início a projeção/ de mãos/ por entre pernas. // tão brasil!

Pois bem. A ficção de Bezerra, na medida em que as fitas são projetadas na tela do Cine Metrópole, também projeta outras fitas, através de palavras que adquirem som, cor, imagem e movimento, tal e qual uma construção em abismo, ou seja, como um filme dentro de outro filme. O de Bezerra, focado na gente miúda, humilde, na cabroeira, nos deserdados da sorte, nos “humilhados e ofendidos”, embora não lhe falte, subjacentes à tristeza – uma tristeza muitas vezes disfarçada em alegria, meio chapliniana –, o humor e a ironia, espécies de antídotos “contra a crueldade das circunstâncias reais”.

Ser gregário por natureza, comunicativo, generoso, por muito pouco, ainda jovem, não teve a sua vida ceifada pela “indesejada das gentes”. Se sobreviveu e chegou à casa dos oitenta anos, tal se deve à sua perseverança, à sua alegria e vontade de viver, mas também à assistência, em tempo integral e dedicação exclusiva, da família e de alguns amigos solidários, a exemplo de W. J. Solha, a quem iniciou, lá em Pombal, na década de 1960, nos caminhos sempre árduos e tortuosos da literatura. E a quem também convocou – ou intimou? – para se lançarem na aventura da realização daquele que seria o primeiro filme longa-metragem rodado na Paraíba: “Fogo: o salário da morte”, calcado num romance de sua autoria premiado no Concurso Joaquim Manuel de Almeida, promovido, no ano de 1967, pela Secretaria de Educação do antigo estado da Guanabara, de cuja comissão julgadora fizera parte, além de Evanildo Bechara e Modesto Dias de Abreu, o dicionarista e ficcionista Aurélio Buarque de Holanda, autor do antológico “O Chapéu do meu pai”, que merece figurar em toda e qualquer antologia do conto brasileiro que se preze. Tempos depois, Aurélio convidou-o para compor a equipe responsável pela elaboração de uma nova edição do dicionário, desde sempre fonte de consulta de várias gerações de brasileiros.

Eis o esboço de um retrato fragmentado do homem e do ficcionista José Bezerra. Que outros avivem as esmaecidas linhas que eu tracei e o reconstituam de corpo inteiro, pois, seguramente, há quem possua mais autoridade do que eu para falar sobre o compositor, o tenor, o dramaturgo, o ficcionista e a respeito de tantas outras facetas que compõem a sua personalidade tão singular e tão plural.


Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL

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  1. Quando fundamos a agência do BB em Pombal, 16 de março de 63, éramos o gerente, o sub, dois contínuos e três escriturário: eu, de São Paulo, na carteira agrícola; o Lessa – de Alagoas, na conta de depósitos e cobrança; o Josmar - do Ceará, no cadastro. Foi um grande passo para a cidade, seu primeiro banco. Aos poucos foram chegando novos colegas. Todos, como os pioneiros, burocratas. Aí chegou o Zé Bezerra, José Bezerra Filho. Morávamos, os solteiros, no Hotel Piancó, e me lembro de quando ele veio ao nosso quarto, abriu uma das suas malas e despejou um mundo de livros sobre a cama. Dias depois, subíamos a larga Rua Nova – que liga a praça da igreja do Rosário à catedral – quando ele se pôs a declamar em voz alta – estudara na Aliança Francesa - e tome Baudelaire no original. Falei sobre ele com tanto entusiasmo, em Sorocaba, a um ex-colega do Banco do Comércio e Indústria de São Paulo que era doido por música clássica, que ele mandou um LP pro Bezerra com Le Martyre de Saint Sébastien, do Debussy. Sua cabeça era, 48 horas por dia, teatro, literatura. Lembro-me de que lemos em voz alta, às gargalhadas, o Auto da Compadecida. E toda manhã, quando chegávamos para o expediente, às 7, ele botava livros sobre seu birô, embora não houvesse brecha pra qualquer leitura durante o batente. E escrevia, escrevia. E dali saiu uma peça sobre Antonio Conselheiro, Canudos, exatamente quando chegou novo colega, também vindo – como ele, de João Pessoa – e, como ele, ligado ao teatro – Ariosvaldo Coqueijo, querendo um texto sobre a morte do estudante Édson Luís, que ocorrera uns dois meses antes, no restaurante do Calabouço, Rio. Bezerra disse – “Vou montar minha peça. Solha escreve a sua”. Que diabo sabia eu de teatro! Mas escrevi. Numa noite. Depois – com um gravador – me vi criando um samba, um in reto tono e três hinos. E logo passei a ser o líder estudantil da peça. E não demorou tínhamos um festival na cidade, minha peça, a dele e outra de Alagoa Nova. E Bezerra se casou com Aracy, depois me casei eu com Ione, alugamos casas vizinhas na “rua dos bancários”, nasceram os filhos dele, nasceram os meus, ele devorando a literatura brasileira, principalmente nordestina, eu devorando os gregos, russos e Shakespeare – e ele ganhou o prêmio de que v. fala, Sérgio, e decidiu que a Paraíba teria o primeiro longa-metragem com o romance premiado dirigido pelo célebre Linduarte Noronha, e assim surgiu “O Salário da Morte” . Bezerra foi, realmente, um furacão que passou em Pombal.

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  2. Beleza de referências, maestro Solha. Aplausos

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  3. Bravo!!!👏👏👏👏Sergio de Castro Pinto...pelo texto ora narrado..que foi complementado com o"comentário" em acima em referência do "Maestro" Solha!👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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