Acompanhara o olhar dos meninos até perceber o caminhão basculante despejando lixo, num ponto longe dali, e bem no limite do assentamento ...

Dom Pepe

rumes guetos ciganos conto
Acompanhara o olhar dos meninos até perceber o caminhão basculante despejando lixo, num ponto longe dali, e bem no limite do assentamento Rume. Chama então a atenção dos homens meio que espalhados pelo entorno. É um repórter de jornal inglês, e quer uma explicação para aquilo, ali bem ao lado da cerca que marca o território Rume. Indecisos, os homens iniciam uma tentativa, algo desajeitada de explicar o que, pra eles é prática rotineira no lugar, quando um repentino barulho os interrompe, desviando também a atenção do repórter.

Há um roncar de carros por trás das casas, bem próximo de onde estão. Rapidamente o roncar se torna um barulhão de motores acelerando antes de dar partida, naquela de esquentar a máquina, e não demoram para entender o que acontece, pois os carros arrancam, e em poucos segundos entram no campo de visão,
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e da câmera: são dois velhos Ladas, ambos de teto cerrado, indo na direção do caminhão basculante, e, ao que parece numa corrida para a nova carga de lixo trazida por este.

Um terceiro surge na sequência. Além de mais lento que os outros, é também mais silencioso, apesar de soprar um pavio negro e falho pela traseira. Esse novo concorrente dá a curiosa impressão de mover-se a uma velocidade variável, factual, feito um mecanismo espacial no vácuo da lua, também parece progredir na distância através de sucessivas brechas encontráveis na curvatura do espaço, mexendo-se suavemente para os lados, em uma quase metáfora daquela conhecida – e consagrada – teoria de Einstein.

Não fosse o detalhe da fumaça no escape, alguém diria que teve o motor retirado, e não para que ficasse mais leve, mas quem sabe no objetivo de trocar essa tecnologia por outra, que, além de mais antiga, fosse também mais compatível com a cultura cigana local; uma que tivesse talvez a suprema capacidade de aliar alguns preciosos fundamentos de sonho e de reza, naturais na cultura desse povo, com o poder de sugestão contido no restante do carro.

É o último da gincana e acaba formando a camada final de fumaça preta que emprestará um novo tom de poeira à outra, antes à sua frente. Os Rumes explicam ao repórter que ali os automóveis servem muito pouco para mais que isto que se vê, que sua principal utilidade é esta: fazer com que os donos cheguem mais rapidamente ao despojo, e tenham como trazer a coleta. Acrescentam que os brancos se desfazem de muitas coisas ainda úteis. Televisões, aparelhos de som, roupas de frio, sem falar de comida.

O repórter se mete no assunto:

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– E eles ficam com tudo? – Pergunta, referindo-se aos 3 exploradores que dispararam na direção do entulho.

-– Sim. Ficam com tudo – Quem responde agora é um homem magrinho, uns 50 anos visíveis na carcaça de pele grossa e um tanto frouxa, de gente sofrida. Apesar do aspecto inequívoco de uma vida de carências, o homenzinho é bastante bem dotado de agilidade, é enérgico, e demonstra possuir espírito bem aceso – Quem mais podia? Os carros são deles. Eles chegam primeiro e pegam o que há de valor. Mas estão certos. Trabalharam muito para isso. Sem falar no trabalho que dão esses carros, é preciso estar sempre consertando, vendo uma coisa e outra. Não é pra todo mundo – Diz.

– Mas como é isso – O repórter pergunta – Esse lixo vem sendo despejado ali? Há quanto tempo? Todo dia há lixo novo?

– Não, não. Chega quando menos se espera, e depois de uns dias passa outro caminhão e recolhe a miudeza que sobrou. Depois voltam com mais despejo, mas fazem isso sem nenhum aviso, por isso eles têm de ficar atentos. Se chegasse todo dia estariam ricos. Eles vendem, sabe? E também fazem todo negócio.

— Como assim?

— Eu mesmo! – picotando os dois lados do peito com os indicadores – Eu mesmo comprei ao Rumvik uma radiola novinha. Novinha não – logo se corrigindo -, seminova, mas funcionando perfeitamente. Apenas troquei a agulha e está lá em casa. O som é espetacular, precisa ver.

– Sim, sim. Não duvido. Pagou o que por ela?

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Por um momento o homem magrinho abstrai o olhar para um ponto indefinido, como quem calcula ou tenta lembrar-se de algo. Diz:

– Paguei... 400 coroas... foi... foi isso.

– 400 coroas dá o que... uns 15 euros. Não saiu cara essa radiola? – Glenn insiste no assunto.

– Um pouco – diz o homem, demonstrando uma ponta de orgulho – Mas não foi tudo em dinheiro. Paguei em dinheiro umas 100 coroas, só. O resto foi em trabalho.

— Que tipo de trabalho?

— Reforço escolar. As crianças aqui têm problemas de aprendizado, e aí compete a mim ajudá-las, o que nem sempre é fácil. Mas os pais delas reconhecem meu esforço, pois a manutenção da bolsa depende do aproveitamento delas na escola, se vai mal os brancos acabam cortando. Os outros me pagam com o que podem.

— Com o que, por exemplo?

— Por exemplo?... Lenha. Pagam o total ou uma parte desse dinheiro cortando lenha para o Rumvik, que a revende para os restaurantes dos brancos. Também recebem objetos variados da mão do Rumvik, em troca de lenha. Termina sendo um bom negócio para ele, porque aí a lenha acaba valendo mais do que a quantia pedida pelo objeto – E acrescenta — Tem que saber fazer negócio, e esse Rumvik sabe... Foi assim que consegui a radiola.

É interrompido por uma voz quase gritando (a pessoa não aparece em cena, só a legenda):

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– Dom Pepe enriqueceu no lixo!

Corte.

Ao lado do homem magrinho há uma mulherzinha inquieta. É minúscula, também muito magra, de tez escurecida, quadris bastante estreitos e está vestida numa calça justa e curta para suas pernas muito finas, e o nariz proeminente lhe concede um aspecto masculino. Tem traços inconfundíveis de alcoolismo, com a neurastenia típica dos viciados em situação de abstinência forçada. Qualquer idade lhe pode ser atribuída entre os 25 e 40 anos. Antes que a câmera se volte para ela, e que Glenn lhe estenda o microfone, ela está continuando o que tinha começado, ainda mais afobada pela atenção conquistada:

— ... Muito tempo nesse negócio do lixo. Ninguém ligava para ele. Hoje é muito mais rico que esses brancos de merda, e olha, muito mais rico que eles! – A mulher fala agitando o dedo em riste, à moda de um discurso – Quando aparece por aqui isso aqui fica coalhado de brancos que vêm beijar os pés dele! Convidar pra isso, praquilo, é jantar, é festa!... – Nesse momento se interrompe, meio que atrapalhada pela própria afobação.

O Rume magrinho, que prontamente saíra em socorro da mulher, encontra-se novamente em cena. E ele diz:

– Eu era um menino como estes daí – Aponta para um grupo deles, todos agora atentos e calados – Quando Dom Pepe deu com aqueles papéis numa montanha de lixo.

E prossegue – Quem ia dar algum valor àquilo, a não ser ele? É como eu digo: a sorte não escolhe qualquer um.

Livre de pressões, a pequena mulher olha em torno, avaliando, satisfeita, o resultado de sua intervenção. Sabe o que vai rolar. Por trás da câmera, Sloan sorri. Reconhece que tropeçaram numa lenda local. Certamente Glenn irá desencavar mais esta história. Estão ali para produzir matéria.
▪ Fragmento inicial de “Dom Pepe”, conto inédito a ser publicado em livro neste ano de 2022.

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  1. Parabéns pelo seu conto. Você consegue transportar o leitor para o ambiente triste e sem dignidade em que os personagens vivem.

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  2. Anônimo4/6/22 07:32

    A segregação racial gera sempre um universo peculiar onde os minimos lampejos de percepção surgem por limites estreitos

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  3. Anônimo4/6/22 09:14

    Fiquei impressionado com o seu texto. Além da qualidade na percepção e detalhamento das expressões humanas, a narrativa bem estruturada, com uma gama de cores refinada dando sentido aos contornos, sombras e focos luminosos dos personagens. Parece até que estou falando das suas pinturas. A busca da perfeição determina o paralelo entre as duas artes vindas dos traços de um Lacet rigorosamente determinado a provocar emoções. Parabéns amigo, sempre fui influenciado ela sua pintura maravilhosa e agora me deparo com um escritor fantástico.

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