Parte I – No Vento das Despedidas Da pequena multidão espremida no cais, persiste apenas o lento acenar de braços para os agora...

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Parte I – No Vento das Despedidas

Da pequena multidão espremida no cais, persiste apenas o lento acenar de braços para os agora indistintos tripulantes ainda avistáveis pelo tombadilho. Medo e esperança e júbilo, numa gama bastante variada de expectativas, seguem depositados naqueles navios acabados de levantar âncora no rumo do sol nascente. Penetrar o temível Mar Oceano é seu grande e desmesurado desafio. Estamos aí no início do século XVI, e o mundo cristão vive um dos seus mais duradouros estrangulamentos desde que as hordas de Gengis Khan, mil e duzentos anos antes, ainda no início de tudo, desceram do extremo Oriente e das estepes geladas da Ásia Setentrional empurrando centenas de tribos nórdicas para o sul, de encontro aos muros do império romano.

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Aos pouquinhos, o expressivo grupo de mulheres, crianças, amigos, pais e parentes dos embarcados, acrescido de uma azáfama de padres, agentes secretos, mensageiros da corte e curiosos de todo naipe, começa a se dispersar. Se esse movimento nos parece irresoluto, isto talvez se explique pela volta à insipidez de suas rotinas, no deixar aquele palco ainda um tanto estremecido pela verbosa profusão emotiva que a bem pouco agitou as bordas do cais, no qual é provável encontre-se ainda vestígios de lágrima ou saliva esparramadas no vento das despedidas, ou onde, quem sabe, escute-se ainda a eco tardio das tantas exortações e recomendações gritadas no desespero. Precisam ainda embarcar de volta, e atravessar a porta do Mediterrâneo para estar de volta às suas casas.

Quem dentre tais diletantes guardaria alguma lembrança da verdadeira Odisséia que foi A Cruzada das Crianças, o enorme melodrama de fundo religioso que se esparramou por uma Europa ainda completamente repicada de sinos, retumbada por preces e trespassada por romarias,
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estrangulada de purgações e penitências? quantos se ergueriam outra vez de seus leitos frios ao ouvir os badalos das matracas que anunciavam a passagem do menino Estevão e seu estandarte, em passos velocíssimos que desconheciam aclive de montanhas e escarpas de ladeiras? Era o menino santo cruzando a Europa desde a Alemanha e levantando os aldeões que choravam ante os milagres previamente decantados pelo pequeno porém fulgurante meteorito religioso que, entre outras coisas, voltava a erguer o bastião da cristandade, diante das misérias e fracassos decorrentes da última Cruzada derrotada pelos infiéis muçulmanos.

De cenhos franzidos, familiares mais velhos daqueles embarcados não disfarçam sua preocupação. Conhecem a heterogeneidade da tripulação acabada de zarpar do Porto das Canárias. Por sua vez, os espias do reino encontram-se ainda confusos com a diversidade das missões repartidas entre os tripulantes, enquanto acólitos da fé acreditam que o alcance de
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quaisquer dos inúmeros objetivos daquela empresa, demandará fortemente os favores da sorte, mercê de desígnios celestes, e isto, apesar da parafernália de bússolas, astrolábios, sextantes e poderosos telescópios à bordo, na cabine de comando, falta-lhes a bordo muito do que certamente hão de precisar, como uma simples fossa em todo o casco do navio que os permita livrar-se do descomer, sem que tenham, para isto, que baixar as calças e revirar a bunda sobre o tombadilho do navio. Acreditam, muitos deles, que o bom termo do empreendimento dependa, sobretudo, desse asseguro da fé em um bom destino, daí o forte ministério de Deus a bordo, com seu espaço distinto e reservado a cruzes, crucifixos, estandartes, flâmulas, ostensórios, estolas, aspersórios, navetas, sobrepelizes, turíbulos e incensos.

Para inevitável reforço dessa fé, contam os abnegados e majoritários Jesuítas a bordo, com uma tropa de fiéis soldados, às ordens tanto dos oficiais de bordo quanto deles mesmos. Uma milícia recrutada entre os devotos súditos suíços, aqueles mais levados em conta pela recomendação da autoridade eclesiástica. O destacamento segue devidamente equipada com armaduras e lanças especialmente saídas das fundições do Santo Ofício.

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Estampadas em seus elmos e capas, a insígnia da Cruz mostrará a bárbaros ou meros silvícolas porventura encontrados, o tamanho do poder com que se defrontam, e que, certamente lhes há de ofuscar a pequenez de sua vida infiel e rasteira, e de os converter à fé de Cristo, operando neles o milagre redentor de salvar-lhes a alma. Mas, além do roteiro duvidoso, a desconfiança é geral sobre o tempo de duração da viagem, que poderá se prolongar por muito além do previsto.

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