Muito criança, ficava encantado quando via um senhor tocar um instrumento, num bar de Alagoa Grande, minha terra natal. Eram momentos de deleite que ainda hoje ressoam no meu peito. Muito tímido perguntei a um conhecido o nome “daquilo” e obtive como resposta: - É um Clarinete!
Ao emigrar para João Pessoa, muito novo, procurei estudar Música. Sempre tive um fascínio pelos músicos. Lembro que em cidades do interior são denominados “santos musgueiros” os que tocam em procissões e solenidades sacras.
Tendo me matriculando no Conservatório Antenor Navarro, na época na rua Duque de Caxias, não consegui concluir nem a “Percepção Musical”. Embora adolescente, tinha uma responsabilidade grande. Era arrimo de família e tinha que estudar e trabalhar num jornal. Não havia como conciliar Música, trabalho e estudo, pois no Jornalismo só temos a hora de entrada no expediente, haja vista que notícia não estabelece tempo para acontecer.
Prof. João LeiteAo me aposentar, decidi estudar Música. Tenho a felicidade de encontrar o Professor João Leite, conceituado docente da Universidade Federal da Paraíba, Primeiro Clarinetista da Orquestra Sinfônica da UFPB e da Orquestra Sinfônica do Estado. Cerimonioso, falo com ele e o mesmo me aceita como aluno.
Sem saber absolutamente nada de Música, a cabeça dá nó quando João Leite tenta me explicar “Círculo das Quintas”, “Harmonia”, “Enarmonia”, “Acordes”, “Métrica”, “Compasso”, “Ritmo” e outros pontos. Para não expor tanto a minha obtusidade, faço semelhante ao personagem Armando Volta – da Escolinha do Professor Raimundo – e passo a chama-lo “Amado Mestre”!
João, o Amado Mestre, tem uma virtude rara. É paciente e dá aula rindo. Na sua presença os exercícios de percepção, mecanismo, embocadura e agilidade parecem coisa simples. Quando chego em casa o “desgraçado” do Clarinete apita e não dá a nota certa. Sem paciência, dá-me vontade de metê-lo no chão. Por outro lado, até a gatinha Samantha e o gatinho Boy saem de perto quando tento fazer os exercícios. Pagamos muito mico estudando música!
Por prerrogativa profissional fui obrigado a fazer um novo curso de atualização, desta vez na Espanha. A primeira coisa que faço é abandonar o “bichinho” do Clarinete.
Nessa involuntária quarentena ligo para o Amado Mestre. Batemos aquele papo gostoso. Lá pelas tantas digo que não está “saindo nada” no instrumento. Incisivo João Leite pergunta-me: - Você tem pego no Clarinete, Josinaldo?
Respondo-lhe:
Tenho, Amado Mestre! Olhe, pego, limpo, lustro, passo a flanela e o guardo de volta.
Josinaldo Malaquias é jornalista, advogado e doutor em sociologia
O homem sempre foi observador e, por conseguinte, apreciador de tudo que o cerca. A fauna e a flora, meio de sustento e subsistência são, ao mesmo tempo, fontes de inspiração. Há, no Evangelho segundo Mateus, admoestação aos que se preocupam com o vestir, por meio de um elogio à natureza: “Considerai como crescem os lírios do campo [...] nem Salomão, em toda sua glória se vestiu como qualquer deles” (Mateus 6: 28-29).
Apesar de, no momento em que vivemos, a apreciação do que nos está à volta não ser prática comum, e termos, cada vez menos, tempo para contemplações – haja vista o modo paradoxal com que tratamos a natureza (queimadas, extinção de espécimes, desmatamentos, etc.), temos uma relação intensa, no plano artístico, com o meio ambiente.
KierkegaardAo observar as coisas naturais, o homem monta analogias em relação a si próprio, ou à sua condição; o pensador dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard, a esse respeito, expressou: "Se um dançarino desse saltos muito altos, poderíamos admirá-lo. Mas se ele tentasse dar a impressão de poder voar, o riso seria seu merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na verdade, de saltar mais alto que qualquer outro dançarino. Saltos são atos de seres essencialmente terrestres, que respeitam a força gravitacional da Terra, pois que o salto é algo momentâneo. Mas o voo nos faz lembrar os seres emancipados das condições telúricas, um privilégio reservado para as criaturas aladas".
O artista – esteja ele em quaisquer que sejam as áreas de atuação – vê de modo transcendente a realidade, transcrevendo-a em sua arte, por meio de associações ou puros recortes do que vivemos. Uma pintura ou uma escultura, mesmo que pretendam retratar, assim como a fotografia, deformam, transformam e transcendem a realidade pela observação interpretativa. A percepção do artista, neste sentido, se torna mais aguçada e, a cada instante, ele tende a reparar mais no que está à sua volta.
Os questionamentos de filósofos e cientistas, por um lado, são maneiras de observação que não implicam, necessariamente, em conclusões imediatas; o artista, por outro lado, transcreve para sua obra, de maneira literal ou não, a realidade; e sua arte, em muitos aspectos, já se constitui numa resposta mediata, mesmo que não esteja conscientemente baseada em nenhuma teoria, porque, dizia Rubem Alves, "é do desejo que surge a música, a literatura, a pintura, a religião, a ciência e tudo o que se poderia denominar criatividade”.
Os poetas, com toda sua simbologia, imprimem, com palavras, emoções às suas observações. João da Cruz e Sousa assim se referiu acerca de sentimentos próprios no poema Beijos: “Dentro de mim se projeta a luz cambiante dos prismas e batem asas as cismas qual passarada irrequieta”.
O músico, por semelhante modo, comunga dessa vivência de observações e transcrições, pondo em música, sob fortes associações, o seu contexto: natural e cultural. Assim, vemos como a elaboração musical pode estar diretamente relacionada com a observância do meio.
Clément JanequinDesde antes mesmo de a Idade Média findar, os poetas e depois os músicos já haviam dirigido sua atenção ao canto das aves. Na renascença é notório o exemplo de canções onomatopaicas como o ciclo Le chant des oiseaux de Clément Janequin (1485 - 1558). Cada época, portanto, desenvolveu uma maneira particular de expressar o canto de pássaros em música, e hoje é possível traçar as várias formas de associação da matéria extramusical com o produto artístico final.
Existem vários graus de associação paisagística de pássaros à música, desde canção em homenagem a um pássaro significativo, ou mesmo sagrado de uma civilização (sem recursos onomatopaicos), até a inclusão em música de um registro fidedigno de seu canto, por meio de um espectógrafo. A paisagem sonora pode ser composta da “fauna” e da “flora” em volta do foco que se quer musicar. Os pássaros foram, em muitas ocasiões, focados dessa maneira, e seu habitat funciona, em alguns momentos na história da música, como acompanhamento paisagístico-sonoro (por exemplo, em Olivier Messiaen).
Seja pelo seu canto ou pelo que representam em determinadas culturas (um mito, por exemplo), as aves têm inspirado obras diversas e multifacetadas: de caráter épico, heróico, lírico ou mesmo patético e pastoral. As técnicas composicionais utilizadas ao longo do tempo para a referência aos pássaros são muitas, em função da relação associativa, ou da transcrição.
Berry Witherden, em resenha crítica do CD Anjos e Visitações, acredita que a maioria dos ouvintes, mesmo que nada saibam sobre o finlandês a quem muito admiro, Einojuhani Rautavaara, vão associar a sua música a paisagens árticas ao ouvirem sua orquestração clara, suas harmonias ásperas, suas melodias “cheias de suspiros e vibrações”. Segundo o autor, o próprio Rautavaara não somente endossou as palavras do romancista Milan Kundera, como também, tomou-as para si, quando este comparou a música sinfônica a ‘uma viagem por um mundo sem fronteiras’.
Se dizem que a nossa terceira visão vem da glândula pineal, uma espécie de olho que nos serve de antena para a conexão eletromagnética com as energias sutis do universo, certamente os poetas devem ter um quarto olhar.
Poeta, aquele que capta e transcreve à criação o que é capaz de modular sentimentos como soa o que é música. E não precisa ser em versos. A simples habilidade de montar frases, contadas e rimadas, está muito longe da poesia, que nem de alfabeto carece. Está no olhar, no ouvir, no sentir, no dizer. Na melodia de uma pintura, na paisagem de um sorriso, no voo da borboleta, ou de um pássaro no jardim…
O cronista que possui essa visão, que somada à pineal, anteninha que regula nossos ciclos, produz substâncias neurotransmissoras e nos conecta às sutis camadas do plano espiritual, é capaz de ser poeta.
Físicos teóricos já concluíram haver dimensões imperceptíveis, além das três espaciais e da quarta que é o tempo. Dimensões sensíveis à tal glândula, que “vê” e percebe além da córnea, detecta sutilezas invisíveis ao olhar comum. É o pequeno radar que está relacionado à clarevidência, à telepatia, premonição e mediunidade. Está tudo na “Teoria das Supercordas”, um capítulo impressionante da Física Quântica.
Dessas elucubrações, teóricas ou práticas, visíveis ou invisíveis, palpáveis ou sutis, vem a ideia de que o poeta sabe, não sabe que sabe ou vê por todas essas brechas. É das réstias ou filetes de luz que perpassam tais canais da intuição, sussurram ao olhar e vibram pela privilegiada epífise de quem enxerga a vida com seus encantos que descende a poesia.
Gilberto AmadoUm fenômeno não menos quântico que faz artistas como Sérgio de Castro Pinto colocar toda a bicharada num “zoo” mais grandioso do que o que Noé juntou na Arca. Um milagre que fez as letras de Shakespeare ferverem na paixão que a alma sente ao se enebriar com o bafo ardente e flamejante do amor. Que tornou Gilberto Amado capaz de abrigar a beleza de todos os oceanos numa gota de poesia com gosto de mar. Que faz um cronista como Gonzaga Rodrigues (foto) juntar frases e ideias, tecendo dramas, cheiros e cenários arcabouçados com a habilidade de um “joão de barro”.
Assim se vê a poesia verdadeira, muito acima da rima, do simplório versejar, do baldo cordelista ou trovador loquaz, tantas vezes amarrotados com a forçada imposição de uma regra além da conta. A poesia é bem maior. Quântica e sutil como quarks e neutrinos, além do que é risível ou da cota do visível.
A poesia está na crônica. No cronista que vê coisas, por mais pífias e sem graça com uma grande diferença. Mas a ele são vultosas, brilhantes como a lua, falantes como o grilo, gritantes como o amor.
Suely Cavalcanti DiasLembrei disso ao receber recentemente da amiga Suely Cavalcanti Dias, confrade e educadora espírita, amiga de meu pai, Carlos Romero, um recorte de uma crônica escrita há 73 anos, n’A União. Em que fala de uma época, quando foi designado para fazer reportagens sobre os debates no plenário da Assembleia Legislativa de então. “Com o decorrer do tempo e da rotina”, ele foi observando, pouco a pouco, “num desses deslizes do olhar”, a fisionomia cansada e atenta de um dos frequentadores das galerias - um funcionário público aposentado “que trazia no semblante desbotado pela vida, a tortura e os restos de suas últimas decepções” - Isso é poesia!
Segundo o cronista, o curioso personagem não faltava a uma sessão sequer. E, “apesar da madureza de sua idade, da severidade doentia de seu aspecto, entremostrava um certo fulgor de encantamento no olhar” - Que beleza!
Este foi um encontro de olhares que se fitaram apenas pela sintonia da emoção vivida nos instantes puros de uma observação sensível. Através daquele semblante perdido nas galerias, e quiçá da pineal privilegiada pela fina intuição do cronista, um personagem marcado pelas perspectivas sombrias da desesperança foi criado. Como símbolo de uma realidade muito humana e de um sentimento de empatia pela condição do semelhante.
Empatia essa que se traduz no bálsamo que enleva a alma embevecida com a arte que os bons escritores têm brindado o mundo e nos feito mais felizes.
“Se Deus quiser”. Não encontramos outra expressão que possa substituir um “Se Deus quiser”. Quando dizemos para nosso interlocutor que dará tudo certo, é inevitável que ele diga “Se Deus quiser”. Poderia ser um “tomara”, um “oxalá”, mas nenhuma delas tem a força de um “Se Deus quiser”. “Graças a Deus” também é expressão insubstituível. Quando dizemos que deu tudo certo, o interlocutor, como que um autômato, dirá “Graças a Deus”. Poderíamos substituir o “Graças a Deus” por um “felizmente” ou mesmo um “ainda bem”, mas da mesma forma não teria o mesmo efeito mágico. Um “Se Deus quiser” ou um “Graças a Deus” elevam os problemas humanos a um patamar divino, afinal de contas Deus estará diretamente, sem subalternos, envolvido no caso.
Na primeira hipótese, a do “Se Deus quiser”, como o evento futuro é incerto – por óbvio –, parece que nos livramos das responsabilidades. Entregamo-las nas mãos da providência. Deus – o leitor poderá substituir Deus por qualquer outra divindade em que acredite, seja Ogum, Santo Antônio, Odin etc. – é o maior álibi do ser humano. Com Ele o homem tira de suas costas o fardo da responsabilidade pelo que está por vir. Atribui a Deus tal ônus. No segundo, o do “Graças a Deus”, o homem, que já havia imposto a Deus toda a responsabilidade pelo que poderia ocorrer, humildemente agradece-Lhe pelo evento favorável. Mas se Deus não cumpriu bem o seu papel aparecerá a terceira expressão insubstituível: “foi Deus quem quis assim”, e voltamos a impor-Lhe responsabilidades pelo que se sucedera. – Pobre menino, estudou tanto, mas não passou no vestibular. Foi “Deus quem quis assim”, dirão. E o garoto, que ocupou o tempo de Deus com seus exames de admissão, terá uma nova chance no ano que vem.
Esse Deus-álibi é uma das duas causas que nos levam a crer em divindades. O homem, enquanto não descobre a realidade irrefutável de alguma coisa, atribui a Deus sua causação. Isso porque não nos conformamos com a incognoscibilidade dos fatos. Tudo tem que ter uma explicação, nem que seja mística. Daí que, ainda hoje, para alguns povos indígenas, relâmpagos e trovões mais que fenômenos climáticos são expressões de sentimentos de deuses. Isso explica também porque enquanto não se provar por a mais b a teoria da evolução das espécies e a de que o universo nasceu de uma grande explosão, existirão pessoas acreditando que nossos avós foram Adão e Eva e que o mundo foi feito em uma semana, pois assim se estaria, metafisicamente, explicando o que ainda não tem explicação racionalmente convincente.
A segunda causa da fé é o nosso medo da morte. Teimamos em desacreditá-la, apesar de termos-na como companhia desde sempre. Conquanto algumas pessoas dispensem a burocracia da natureza e dêem cabo da vida, principalmente da dos outros, por conta própria, pensar que tudo termina quando aquele músculo chamado coração deixa de bombear sangue para o resto do corpo não é idéia com que o homem possa se acostumar. Daí vem a crença na longevidade do espírito em contraposição a efemeridade do corpo. A morte é vírgula e não ponto final, pensamos. Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos. Então estendamos nossa vida para além dela. Um juízo-final e pronto, lá estaremos novamente, aptos para a vida eterna. Desencarnar? Sem problemas, a reencarnação está aí para voltarmos.
Não é agradável crer que tudo acaba com o cerramento dos olhos.
Gostaria de crer que existe um paraíso a esperar-me, depois de uma temporada expiando pecados no purgatório, e que lá reencontrarei quem me é precioso. E várias virgens, se a crença for mulçumana. Ou que meu espírito caminha em progressão, e que voltarei para esse mundo ou um outro, até minha alma chegar num estágio avançado de evolução. Seria bom acreditar no “Pai Danguê” e que ele, após um pequeno “trabalho”, afortunar-me-ia com a mulher que amo e mostrar-me-ia quão inúteis foram meus galanteios e gracejos não correspondidos. A solução estava logo ali, embaixo do nariz, num simples jogo de búzios e numa oferenda de perfumes e guloseimas a Iemanjá. Quem sabe crendo numa dessas igrejas novas, após participar da sessão do descarrego ou da vigília dos 318 pastores, eu não encontraria a felicidade nos negócios, agora, já, ainda nessa vida. Ou poderia tornar-me adepto do hinduísmo e cultuar uma vaca ao invés de devorá-la – pelo menos para o pobre bicho seria uma redenção. Mas acredito apenas na capacidade humana de desvendar através da razão. O que não se descobriu, um dia se descobrirá através do conhecimento racional.
Porém, não tenho como caro esse meu posicionamento puramente cético. Não desprezo a fé no ser humano, desde que isso não implique em proibir o uso de anticoncepcionais, no preconceito contra homossexuais, mulheres e principalmente contra outros cultos – ou na descrença neles, na vedação do sexo por prazer, na aversão ao avanço da ciência, na imposição de uso de vestimentas... Compreendo que necessitamos do Deus-álibi para explicar as lacunas do conhecimento humano e para fugir do tormento do inevitável fim da vida. A crença em divindades cumpre esse papel. A religião, o culto, a fé são necessárias ao inquieto e amedrontado homem. A inexorável morte, como a todos, também não me é bem-vinda.
Somos todos poetas. Quem nunca escreveu um verso, ou pelo menos uma quadrinha para alguém que admira? Confesso que muitas vezes tentei e igualmente vã foi minha experiência. Quem lê poesia é o poeta que não escreve poesia, disse alguém.
Cedo houve uma tentativa de ver meu nome na capa de um livro de poemas. No redemoinho dos quarenta anos de idade, em desobediência a Nathanael Alves que me pedia cautela antes publicar algum livro, como ele havia procedido na juventude, na insistência de Nonato Guedes, há vinte e seis anos, coloquei asas na minha produção de poemas.
Não renego o que publiquei, até porque foi prazeroso, com boa acolhida.
W. J. SolhaO poeta, artista plástico, ator e romancista Waldemar José Solha, com a visão universal que lhe é peculiar, à época falando da minha poesia, sapecou um punhado de palavras elogiosas que me deixou tonto, comparando-me ao que faziam os antigos pintores chineses que, com poucas pinceladas numa tela em branco, diziam muitas coisas. Recolhi-me, escondendo as palavras a respeito daquilo que o autor de “Israel Rêmora” tinha escrito sobre meu livro. Afinal, sou um poeta que ler poesia mais do que escreve.
De poeta bissexto na juventude imitador dos românticos, escrevendo sobre o choramingar do coração, continuei dando asas à imaginação, colocando no papel o produto das lucubrações, aquilo que não conseguia reter comigo. Na época em que foi publicado “Lira dos 40 Anos”, tinha esperança de tocar na sensibilidade da musa que me inspirava. Meia dúzia de leitores, igualmente apreciadores de poesia, deu guarida ao que publiquei.
A partir daí, então, recolhia ao silêncio das gavetas a poesia que produzia. Lendo mais do que escrevendo, consumia meu tempo a descrever outras paisagens da literatura.
Nathanael AlvesNão dando cabimento nos conselhos de Nathanael, encontrei em Horácio o ensinamento como conforto que tanto esperava, pois o mestre dos mestres afirma que “o trabalho do poeta não se restringe ao momento singular da criação, mas representa o acúmulo da experiência criativa”. Uma bofetada em tudo o que tinha feito. Mesmo assim insisti na publicação das poesias. Vinte e seis anos depois, eu continuo satisfeito porque publiquei aquele livrinho, mas relendo agora os poemas com olhar crítico, constato que alguns merecem reparo. Nathanael tinha razão.
O tempo passou, voltei-me a outras ocupações literárias, enveredei pela pesquisa acerca do passado de minha cidade e seus habitantes, de minha família, consumindo o tempo escrevendo sobre o que pesquisava. Mas sem nunca abandonar de vista a poesia, algo prazeroso de ler.
Tempos atrás, quando menos esperava, novamente estava produzindo poesia. A Musa que desde cedo amava, trouxe-me a inspiração para cantar os ímpetos da alma na voz da terra e dos rios. Poemas que às vezes são incursões autobiográficas, contendo a visão do relacionamento entre duas pessoas que o tempo se encarregou de modelar.
São pequenos feixes de luz em castanho, negro, verde, azul, caramelo, mel. São misteriosos avisos para serem desvendados, clamam por terem os segredos revelados. Incansáveis percebem qualquer movimento, capturam sombras e sonhos ainda no ar. Sentinelas da guarda permanente da alma, vigilantes da insana ânsia por descobrir. São faróis no oceano infinito, percorrem pegadas deixadas pelo luar no mar em rastro prateado
À noite, mais ainda, são como armadilhas lançadas de catapultas para captura de outros seres, iscas faceiras recheadas de malícia para conquistar outras luzes. São fatais quando misturados a um bom vinho. São puro desejo à meia luz, ao luar. Formam cenários pinçados de páginas de romances clássicos e banais, folhetins espalhados embaixo das marquises do Ponto de Cem Réis em tempos idos.
Poderosos, têm o dom de penetrar o corpo, gelar a espinha, mergulhar no desfiladeiro do íntimo d'outros seres postos à sua frente. E sem tocar conseguem tirar-lhes a roupa, acariciar-lhes a pele, desnudar-lhes o sorriso tímido, jogá-los à lona ou à cama.
São ameaçadores se lhes for negada a chave do coração, largados fora da caixa de batimentos. Se trancados atrás de grades ou amordaçados com lenços, ficam atônitos. Sim, são cachoeiras por vezes de tristezas ou alegrias, ou por coisa pouca, um cisco permanente chamado saudade. Lubrificados brilham mais, ganham novos contornos, tons diferentes, como final de tarde na linha do horizonte.
São sábios. Sabem obter as respostas das profundezas, torturam sem deixar cicatrizes, só as invisíveis. Se emoldurados percebem mais, ou saem do foco. Desastre in loco, cabeça virada ou mesmo sobre o nariz, eis que são lentes sem consenso.
Quando piscam são apaixonantes e buscam o reflexo dos pares, a carta perfumada do vento no rosto, a magia de algo novo. Conquistados e conquistadores, avançam quase antropofágicos para saborear o outro. E mastigam sem dentes a essência da desconstrução de outrem.
Por vezes são loucos. Lançam indagações crônicas, torturantes, desarmônicas, aos montes. Às vezes, são vermelhos, seja por transformação ou pelas nuvens da fumaça ao seu redor. Zumbis da madrugada ou da manhã da noite varrida e errante, que desemboca na manhã da extrema luz, são quase extrema-unção.
São perdidos ao se fecharem na última olhada, o fim de tudo ou o do quase nada, apenas piscadela ao passar por um novo túnel de uma longa estrada. Quem sabe, eis o momento do encontro...
Designado para fazer a reportagem dos debates da Assembleia Legislativa, relatar para os leitores o curso das discussões levadas a efeito pelos nossos parlamentares, observar tanto o entusiasmo de eloquência oratória dos deputados, como o ardor aclamatório dos frequentadores das galerias, tornou-se esse trabalho mais uma experiência de minha vida do jornal, mais um conhecimento travado com as múltiplas facetas da imprensa.
Com o decorrer do tempo, com o hábito do trabalho, com a rotina dos debates, fui verificando, pouco a pouco, num desses deslizes do olhar, numa dessas despreocupações de repórter, a presença quase infalível, a fisionomia cansada e atenta de um dos frequentadores das galerias.
Tratava-se de um velho funcionário público aposentado, trazendo no semblante desbotado pela vida a tortura e os restos de suas últimas decepções. O curioso personagem nunca faltou, quer fizesse chuva, quer fizesse sol, a uma das reuniões da Assembleia. Apesar da madureza de sua idade, apesar da severidade doentia de seu aspecto, entremostrava sempre um certo fulgor de encantamento no olhar, de felicidade, de esperança, mesmo quando da tribuna, um dos parlamentares dissertava sobre os problemas do povo, defendia um tema qualquer.
Então, eu via, emocionado, o homem sorrir satisfeito, olhar fraternalmente para os companheiros, erguer o braço num extravasamento de entusiasmo indiferente ao seu reumatismo e às dificuldades de sua vida de fracassado. Mas, o que mais me comovia e que mais me enchia de tristeza era quando a sessão decorria sem anormalidade, sem tumulto oratório, numa placidez de lago suíço, pois, nesse momento, o funcionário pegava de seu guarda-chuva, ajeitava o chapéu na cabeça branca e rumava, triste, desconsolado, em direção a um banco de praça, a um café de segunda classe, ou então ia descansar, repousar os nervos exaustos, em sua modesta residência de subúrbio.
Ninguém notava a saída do pobre ex-servidor público. Ninguém lhe percebia o desânimo no rosto. A sessão continuava sem novidade, passava-se à ordem do dia, às sisudas aprovações dos projetos e resoluções, enquanto, o espectador infalível das galerias ia pelas ruas, por entre a multidão indiferente.
Assembleia Legislativa da ParaíbaA tarde para ele deveria ser horrível, com muito tédio, com muita melancolia. Ficava, às vezes, sem ter para onde ir. À noite, nem é bom falar. A velhice pobre na solidão, povoada de fantasmas, plena de doces reminiscências da infância, deve ter um aspecto dramático e desolador. Para o velho funcionário público, a Assembleia era um divertimento, um passatempo, um espetáculo grátis e bom para sacolejar os seus nervos, para fazê-lo crer que ainda vive, que ainda vibra. Por isso jamais faltou a uma reunião.
Sem filhos, sem amigos, sem conforto, nada mais esperava ele do mundo. Pouco importava que um discurso abrisse um lampejo de esperança, coisa que ele já perdera, há muito tempo. Ia à Assembleia somente para matar os poucos anos que lhe restavam. Enquanto os outros iam ao cinema, só tinha, graças a esse regime democrático, as galerias para encher o vazio de sua existência árida.
Enquanto outros, os jovens, operários e homens, em pleno exercício da função pública, procuravam a Assembleia para melhor medirem os acontecimentos das coisas públicas, para melhor se informarem da política estadual, o velho amanuense aposentado só tinha um único interesse — ter para onde ir, gozar ao som da oratória parlamentar, derradeiros instantes de sua insípida existência...
* crônica de 1947, escrita no Jornal A União
Carlos Romero é patrono deste ambiente de leitura (in memorian)
Gil, a estima me autoriza esta liberdade de tratamento. Gil, somente Gil. Como igualmente me assegura a sinceridade das tuas palavras. Germano Romero dispõe-se a acolher-me em sua Acta Diurna eletrônica (lembre-se que a de Júlio Cesar – o álbum - era pregada no muro de casa) e era mais de aviso do que de lírica. E eu pedi a Germano para me rever, sem frescura, depurando-me (se é possível) das fermentações tão próprias e mesmo naturais à condição do homem civilizado.
Vaidade? Que santo pôde exilar-se completamente dela? O que senti e o que sentiste quando elogiaram a nossa inteligência? Que fervor íntimo foi aquele que me elevou e te elevou com a conquista do nosso primeiro 10? Esse fervor, por mais natural, nasceu a partir de quando olhamos em redor e vimos que havíamos chamado a atenção ou o interesse dos nossos colegas de classe.
Não é um mal quando a vaidade é uma distinção. Será que São Francisco de Assis não sentia coisa parecida ao ver que as gentes que o amavam se achavam no mesmo gênero dos seus passarinhos? Jesus, em vida, conseguira muito menos. Sobrepujou-o infinitamente quando Paulo enfrentou um verdadeiro coronavírus para unir pagãos e cristãos na face da terra.
Francisco Gil MessiasPois bem, caríssimo Gil, depois de setenta anos ansiando por sair de mim, sinto, na verdade, que já fiz o que podia. E fui muito longe com o que me sobra do carinho desta cidade, uma cidade reservada, sem grandes expansões, sem ufanismos, até mesmo descuidada com os seus símbolos cardeais, o seu Cabo Branco, os seus tesouros urbanos e muitos dos seus heróis, como bem lembrou o companheiro Martinho Moreira Franco ao registrar a morte, na semana passada, do nosso campeão mundial, o grande Índio que não deve ter rua nem estátua em Cabedelo. Talvez eu tenha servido para lembrar essas coisas, ao mesmo tempo que ver o meu nome impresso no papel, um papel de pouca duração, peixe do dia, descartado após a leitura, mas Acta diurna sempre, mudando a cada Gutemberg, volatilizando-se, mas jamais extinta na impressora que o teu xará, o diretor do Rebate de Campina Grande instalou na vida deste teu amigo e criado, o nêgo Gonzaga.
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Sim, ia esquecendo: em Alagoa Nova existe o Bálsamo, é uma nesga de sítio, a 5 minutos da cidade, onde íamos furtar as jacas que Brunet, o achador de Pedro Américo, registrou entre os achados de minas que o imperador lhe confiara. Não fosse o corona, é para lá que eu iria.
“Você é um subversivo!”, gritou o colega ao telefone.
Fui pego de surpresa. Subversivo? Eu? A palavra, a princípio me pareceu familiar. Há muuuitos anos eu não escutava isso.
Tudo começou com uma discussão, a princípio saudável, com meu grande amigo, antigo colega, que vivenciou comigo momentos agradáveis. Falávamos sobre o momento político atual. Eu criticava o presidente, dizia que era medíocre e ele defendia.
Foi quando comecei a dar fundamentação à minha opinião, ele sentiu-se encurralado, e reagiu como reagiam no passado de nossas discussões políticas, quando a razão fugia: fazendo ataques pessoais ao dono da opinião divergente, dizendo que é comunista, petista e outros epítetos.
Subversivo, eu? A palavra me soou mágica. Foi quando eu voei no tempo (acho que não tenho a doença de Alzenheimer pois ainda consigo voar no tempo e dele retornar!). Voltei 50 anos no passado, pousando suavemente em 1968.
Foi um ano mágico! Quantas coisas aconteceram, boas e más. Nesse ano o Botafogo foi campeão carioca. O filme 2001 Uma Odisséia no Espaço foi o grande lançamento do ano. Concordo com Zuenir Ventura: 1968 começou e não terminou.
Lyceu ParaibanoFoi o meu primeiro ano no científico do Liceu Paraibano. Nova turma, novos colegas, novas amizades. Nova mentalidade, a puberdade se havia ido embora, depois de muito brincar no ginásio eu finalmente me tornara um adulto responsável.
O Liceu dos anos 1960 era um lugar mágico. Um estilo de vida estudantil totalmente diferente do que eu tinha experimentado, até então. Fascinante! Liberdade total, diferente dos outros colégios até então. Só passava quem tivesse responsabilidade. E como eu estudei! Sem deixar de brincar, aprendi a dosar. O Grêmio Estudantil era onde nos encontrávamos, nos intervalos, para jogar xadrez, ouvir música e discutir política.
Estávamos no quinto ano da ditadura militar. Mas em 1968 começamos a respirar um clima primaveril que varreu o mundo todo. Aqui não foi diferente. Prenunciavam-se mudanças. Discutia-se a implantação de uma política de ensino importada dos Estados Unidos, a qual os estudantes brasileiros repeliam com veemência. Tratava-se do Acordo MEC-USAID, que até hoje eu não sei o que era.
Misturando com os estudos participei ativamente como representante da classe, pichando paredes e distribuindo panfletos. Foi o ano das grandes passeatas. Reuníamos-nos em frente à catedral. Depois caminhávamos em direção ao Palácio do Governo, uma multidão na contramão. Geralmente não conseguíamos chegar até a Praça João Pessoa, dos Três Poderes, porque a polícia baixava o cassetete antes disso.
Protestávamos sobre tudo: liberdade de imprensa, preço das passagens, guerra do Vietnã, liberdade de opinião. E principalmente contra a ditadura militar.
Numa dessas passeatas fomos dispersados violentamente pela polícia, ao entrarmos no beco da rua Conselheiro Henriques. Eu estava com uma companheira de atividades subversivas, Mone Pessoa, irmã de meu colega e amigo João Alberto Pessoa. Eu poderia ter corrido, mas deixá-la-ia sozinha no meio de três policiais armados de cassetetes e espingardas. Não consegui socorrê-la. Resultado: apanhamos os dois!
Lá pra setembro ocupamos por três dias o Cassino da Lagoa, onde à época funcionava o CÉU - Clube do Estudante Universitário. A polícia militar nos desalojou debaixo de cacete, inclusive quebrando a radiola na hora em que tocava o Hino da Liberdade: “Já podeis da pátria fiiilhos...”
Depois, ocupamos por iguais três dias a FaFi, Faculdade de Filosofia. Desta vez quem nos expulsou “pacificamente” foi a Polícia Federal. Nesse momento tive a oportunidade de assistir a uma cena que me marcou até hoje.
Enquanto os policiais, armados de metralhadoras, nos botavam para fora e fechavam as portas da FaFi, Everaldo Júnior subiu numa balaustrada e fez um discurso violento contra a ditadura, a PF e o Superintendente da PF à sua frente, sujeito chamado Emilio Romano, que assistiu contricto, trêmulo, porém impassível.
Ao longo da semana nos reuníamos secretamente para ler ou ouvir o que era proibido. Lembro-me de ter escutado secretamente o disco da peça Arena Canta Zumbi, num quarto dos fundos da casa de Karlov Neves de Lima, irmão de Babi. Era a época do “É proibido proibir!”
Antigo Clube Cabo BrancoNos fins de semana nos divertíamos muito singrando as noites de João Pessoa. Durante a semana tinha o xadrez e o gamão do Esporte Clube Cabo Branco. Nos fins de semana tinha o Jantar dançante do Clube Cabo Branco, as noitadas no Elite Bar, Zé Rubens Jangada dando um show de bateria, especialmente no samba-rock.
Tinha a Toca do Coelho, onde passávamos quase a noite toda dançando em 1 metro quadrado de pista, coladinhos. Depois podíamos finalizar a noite na churrascaria Bambu, no bordel da rua Maciel Pinheiro ou no Independente Atlético Clube.
Pois foi justamente tudo isso o que o amigo me evocou, essa deliciosa volta ao passado, ao pensar que estava me ofendendo. Na idade em que eu estou, ser assim chamado chega a ser até lisonjeiro.
“Subversivo!” Não me ofendi. Respondi, agradecendo:
Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vindas dos carros meio vazios, meio carregados de quartos de bodes e feixes de caroá, a fim de, pelo seu temperamento, mais indultar do que cobrar a derrama da época. O pai trazia em si uma generosidade inata, que tangenciava a vaidade. Nunca se soube definir direito aquele sentimento: bondade ou orgulho? Mas, orgulho do quê, haveria de ter o pai? De uma suposta ancestralidade nobre perdida nas brumas da fantasia? Da honestidade decantada pelo meio milhar de compadres que lhe tomavam a mão para tutelar e exemplar seus primogênitos? Dos cabelos negros, inteiros da fronte até à nuca, algo castiços, sempre cuidadosamente engomados? Do nariz adunco projetando-se sobre os lábios finos, herança mourisca de priscas eras? Das necessidades poucas, estoicas, desde o de comer até as festanças? Não sei... Vá ver que era daquela doçura mesma, que, com olhos marejados, ele expressava na fácies quando contemplava algum desses pequenos. Coisa de pai-avô. Casou maduro, passado do ponto. Tanto que pôs todos a perder com essa delicadeza inapropriada em tantos momentos em que a palmatória teria sido a solução, o ponto final em causos nos quais não se via o bom termo.
O fato é que eram tempos difíceis, como difícil era arrancar daquele torrão árido alguma réstia de umidade fora da breve e errônea estação das águas: precisava-se cavoucar léguas, intestino da terra adentro, ainda que às margens do que fora um caudaloso rio na última enxurrada. Como um bêbado - arquétipo abundante por lá, aliás -, cujo balouçante tropeçar não se sabe se e quando o conduzirá para casa, assim o era o inverno naquilo que se convencionou chamar Quadrilátero das Secas, mercê de algum arranjo da politicalha sempre atenta na cabala dos minguados votinhos do vilarejo. Nome bonito, pomposo, mas de serventia nenhuma, exceto confundir ainda mais a já insignificante representação da região nos mapas escolares.
Não havia produção regular de nada; só o acinzentado do horizonte, marchetado pelo azul incandescente do céu sem nuvens e pelo esverdeado de uma longínqua cúpula de umbuzeiro, soldado valente de um exército exaurido de sede. Uma cabra aqui, outra acolá, mascando a gosma tóxica e cáustica produzida pelo avelós, era o que se via de criação. O alimento de uma rês bovina, o farelo ensacado, tornava-se rapidamente mais caro do que sua própria cabeça. E até a palma forrageira, essa heroína, só suportava até certo ponto as temperaturas vulcânicas do estio implacável da caatinga. Depois, perdia a seiva e descangotava o pescoço, qual mamulengo triste que chorasse a falta d’água. O gado, coitado, abandonava as forças e se deitava no pó, com as costelas furando a pele macilenta e o olhar melancólico num barreiro esturricado qualquer. Aí só a tipoia para o manter de pé mais alguns dias, antes do fim. Um lugar pobre, afinal; pobre de Jó. Só a desnutrida prefeitura mantinha algo de vida naquela paisagem surreal, pagando mês sim, mês não, derréis disputados apaixonadamente pelos aliados da facção ora entronada.
Voltando ao moleque, ficou mouro mesmo, que nem o pai, exceto pelo nariz adunco, que não herdou, e acrescido de umas sardas salientes pelas frontes, enquanto os outros saíram aos galegos sararás do brejo sumarento das bandas do Sul. Sobrolhos espessos emoldurando olhos perscrutadores do fundo das coisas. Com a sorte entregue às moiras, por um milagre não teve o fio da vida cortado já no primeiro segundo em que, aos engasgos, chegou aos seus.
A mãe, mulher pequena, pele clara, cachos acobreados caindo na testa, mais sedutora do que bonita, contou que as estocadas agudas que prenunciaram a chegada da raspa de tacho começaram à boca da noite, quando, na calçada alta, as comadres tricotavam em bilros a vida do minúsculo município. Certo momento, com as ancas alquebradas de parturiente pedindo clemência, foi lá para dentro, recolher-se na cama de jacarandá, anciã de molas barulhentas, herança de sabe-se lá qual antepassada. Decidira aguardar deitada o rompimento do invólucro que mantinha atado a si aquele que seria seu quarto filho, engendrado ali, no cariri ressequido de chuvas, todavia pródigo de presságios. Estava tranquila. Tinha fama de boa parideira: rápida em expulsar do conforto uterino o vitelo que gerara. A bem da verdade, esse moleque vingara por sua conta e risco, aproveitando-se, matreiro, de um descuido entre regras mal anotadas. Três era uma boa prole. Avara, inclusive, num tempo em que o eito pedia oito ou dez. Mas não havia eito. A mania do pai era educar todo mundo na capital. Não aceitava ver rapazes sem estudar, arando calhaus velhos de terra, valendo pouco mais ou nada. Sensato, o pai. Sempre sensato. Nunca quis outro espólio do velho atarracado de bigodes fartos que lhe educara senão um surrado relógio de algibeira, cuja tampa em metal nobre, enfeitada de arabescos, soava uma sineta ao ser aberta.
Às horas tantas, a natureza desembainhou seu cutelo. Era chegado o momento em que a mulher, sozinha na sua agonia e, ao mesmo tempo, na maravilha de dar à luz, estrebucha de dor e alegria. A mãe rogou pela parteira amblíope, de feições caucasianas, que a socorria nesses decisivos instantes. O pai saiu do quarto. Elas e ninguém mais, na atmosfera baça, higienizada pelos vapores da água fervente, haveriam de se entender.
A barra surgiu, tingindo de amarelo-ouro a encosta da serra; o sol agigantou-se no firmamento, esquentando o lombo dos lagartos e das gentes. E nada de coroar. Angústia a não mais poder. A miúda protagonista gemia entredentes os terrores de todas as mães, suplicando a São José, pai de Cristo e devoção da casa, pela sua própria e pela sorte daquela entezinho que hesitava em chegar, por mais força que ela fizesse. Lá pelas onze, exangue pela dilatação máxima, a mãe emitiu um som gutural, enquanto se mostrava pela abertura ensanguentada um pequeno crânio, redondo como uma melancia, envolvido pela placenta e enlaçado pelo rugoso cordão umbilical. Daí por diante, travou-se a luta do rochedo com o mar. Com mãos de prestidigitadora, a parteira conduziu delicadamente o pequeno ser de volta ao canal de parto para, numa manipulação às cegas, tentar desenlaçá-lo, ironicamente do tubo pelo qual sorvera os nutrientes que lhe permitiram aportar ali, do ventre penumbroso e liquefeito para o lume frio da casa da cancela, àquelas horas de Deus. Uma noite e um dia se consumiam nessa peleja.
O crepúsculo chegou com a mãe desacordada e aquele trapinho, roxo como uma estola episcopal, no colo da parteira. “Chame o padre, para seu menino não morrer pagão”, disse ela, grave, mirando o pai, enquanto enxugava a face gotejante de suor. “A mãe só precisa de água de beber e sossego”, e deu o bom combate como encerrado. Por teimosia ou confiança, o pai não se moveu da cadeira. Deixou que o manto suave do breu cobrisse o mundo, seus extenuados convivas, e entregou-se, ele próprio, a uma vigília confusa.
Lá para os lados da Serra da Engabelada, uma velha coruja arregalou ainda mais os olhos cintilantes, piou forte, um pio de arauto para se impor aos notívagos de todos os clãs, e bateu as asas poderosas contra a silhueta prateada da lua, celebrando, num voo monumental, a chegada de mais um filhote no seu território.
Pois assim que a ampulheta virou e a nova alvorada perpassou as telhas vãs, rastreando de luz o piso de gastos mosaicos, a mãe criou tento, apoiou-se nos cotovelos, içou-se da cama e, arrastando penosamente as pernas inchadas, dispôs o peito latejante de colostro à ávida sucção do rebento, que dormitava sob os panos, com a respiração curtinha de um cabrito. Mal ele pegou a auréola intumescida do mamilo com a boquinha ansiosa, o ar puro e cauterizador abriu caminho pela traqueia, chegando até os pulmõezinhos constipados de muco. E a pele arroxeada, grudenta com os restolhos da peleja, ganhou um matiz avermelhado, sanguíneo, e como que se descongestionou, acomodando mãe e filho naquele idílio de vida.
Os propósitos acadêmicos de perpetuação das tradições literárias e de estímulo à cultura geral obrigam a pensar na escola, de um modo genérico, e de um modo mais específico na universidade, como espaços privilegiados de convivência e de interferência renovadoras. A memória cultural, a pesquisa e o ensino, integrando-se, como partes que são de um mesmo universo e de um mesmo processo.
Referendo a visão pedagógica conferindo ao papel do professor a dignidade que lhe é inerente. Dignidade historicamente reafirmada na resistência anônima que o sistema explora e finge ignorar.
Foi assim que um dia, inspirada pelos ideais de Paulo Freire, transformei jornais velhos em texto didático, ousando levar para as aulas de Português do Colégio Estadual autores paraibanos ainda não estudados: Eduardo Martins, Virgínius, Gonzaga Rodrigues, Vanildo Brito, J. J. Torres, Natanael Alves, Aurélio Albuquerque, Juarez da Gama Batista etc. Era no tempo em que o livro didático tinha distribuição escassa ou inexistente, em contraste com o esbanjamento incentivado de hoje.
Aproveitando jornais velhos, os alunos aprendiam a valorizar o aparentemente inútil; desenvolviam o hábito da leitura e da pesquisa; organizavam seus próprios livros, sem qualquer custo econômico; integravam-se à realidade pelo conhecimento do autor contemporâneo; garantiam material didático para o estudo de texto, objetivando a superação da gramatiquice dominante; enfim, participavam e comprovavam que as dificuldades podem ser vencidas.
Um dia, Luiz Augusto Crispim amanheceu escrevendo em sua crônica que "Ângela Bezerra desencantou o escritor paraibano." O cronista recuperava, na sedução da palavra mágica, essa história de mais de trinta anos. Foi o maior título que já recebi.
Ângela Bezerra de Castro é professora e crítica literária
Nunca fui de acreditar muito em sorte. Sempre achei que ela existia, mas dentro de circunstâncias maiores, e que nós, tínhamos sim, uma responsabilidade em fazê-la acontecer. Ficar esperando sentada alguma coisa, não me dava muita fé em realizar algo caído assim do céu. Por isso que, quando ouvia alguém dizer: “Fulano/a tem muita sorte! Olha lá a vida dele/a...”, eu sabia no íntimo que de alguma maneira, aquela pessoa havia corrido atrás, pulado no abismo sem rede, para conseguir sua conquista. Sempre achei que somos sim, protagonistas da nossa história. Mas, isso não me deixava totalmente descrente da sorte. Misteriosa, ela existia de alguma forma.
Outro dia, conversando com pessoas queridas, ouvi o relato de uma delas, sobre como namorou pessoas, foi embora pra outra cidade, fez concurso público, acabou namoro, assumiu posto, encontrou novo amor, casou, etc e tal… e fiquei a pensar. Olhando de fora, parece sorte. Mas não é! Essa pessoa tomou as rédeas do seu cavalo, como diz tão bem o ditado popular: “A sorte/felicidade é um cavalo selado que passa na sua janela!”. E essa amiga, penso eu, pulou no seu cavalo sem destino, criando assim o seu destino, que foi de final feliz. Nem sempre o é, pois das nossas escolhas o resultado quase sempre é uma incógnita.
Uma outra pessoa, que foi casar e morar no exterior, a mesma coisa. A mãe estava sempre a dizer: “Aquela moça tem sorte!” Qual nada! Ela escolheu, tomou decisões, se aventurou e encontrou seu caminho. Ou o desenho dele. O fator sorte? Claro que existiu nos dois casos, mas é apenas um dos ingredientes, que sem o poder da escolha soberana, nada aconteceria.
Qual minha surpresa? Lendo a crônica “Mazal Tov”, de Letícia Wierzchowski, escritora e roteirista, autora de "A casa das sete mulheres", me deparo com seu texto sobre a sorte.
Letícia fala do ano novo, do espírito de renovação, das suas listas (me identifiquei, porque também faço as minhas, com possíveis e inimagináveis desejos) e do seu papo com um rabino de Porto Alegre, onde mora. A conversa foi sobre um dos pilares da religião judaica, a circuncisão, que é feita nos meninos sempre no seu oitavo dia de vida. Nesse momento o menino recebe os votos do rabino de boa sorte, que em hebraico, é Mazal Tov. E o rabino explica o que significa a palavra e a sorte, na crônica de Letícia:
“Mazal é um acróstico de outras três palavras: uma delas quer dizer local. A sorte, portanto, depende do lugar onde você está. A segunda palavra do acróstico quer dizer Tempo. A sorte depende do tempo no qual você vive. E, por fim, a terceira palavra que compões mazal é estudo.
Então, a sorte ensejada na religião judaica não e aleatória nem trivial. Ela depende da conjunção desses três fatores para se realizar. Local, tempo e preparação. É uma sorte na qual atuamos também, e não apenas o divino....E sim, precisamos estar preparados para os nossos sonhos, precisamos estar prontos para os nossos desejos, alinhados com o nosso projeto, de gavetas arrumadas para as mudanças que almejamos realizar. Temos um papel importante dentro do imponderável, um papel fundamental e não podemos nos furtar a ele.”
Compartilho com Letícia quando diz: “É tão fácil reclamar que a gente está com azar… Mas estamos preparados para tudo que desejamos? Fazemos a nossa parte, esse um terço do mazal tov?”
Portanto, as amigas citadas e mais outro tanto de exemplos que temos nos arredores da vida, de pessoas que têm sorte, também têm lugar, tempo, circunstâncias e aprendizado, se organizam em uma teia de possibilidades e disponibilidades para que as coisas e a vida aconteçam. E aí muita atenção para, toda vez que dissermos: “Aquele/a tem tanta sorte!”, que a gente pense no local, tempo e sabedoria que essa pessoa e suas circunstâncias tiveram que atuar, brigar e principalmente escolher, para que a sorte se instalasse.
No final, cada um de nós temos sim, a possibilidade da escolha. Estamos a escolher a cada minuto das nossas vidas. Fazemos isso tanto inconsciente como atenta e deliberadamente. Quero ficar ainda mais de olhos bem abertos, para correr como Lola!; escolher o caminho de Robert Frost; a Melinda de Woody Allen; e pular sim, nos abismos que fazem parte do meu latifúndio.
Eu só queria ter a capacidade de reconhecer e montar sempre o cavalo do meu destino. Construí-lo, ser sua dona, ou pelo menos sua protagonista e sujeito das minhas escolhas, saber reconhecer esse vulto que me assobia da janela, e ter sempre a consciência de, como disse Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, também.
No dia do meu aniversário, sempre recomeçando o signo de Aquário, me desejo Mazal Tov! E a vocês também, que assim como disse Letícia, para começar um ano bom, desejo , de um verão iluminado, essa palavrinha hebraica para todos.
Mazal Tov!
“A prontidão é tudo!” (Shakespeare em Hamlet)
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora
“Estão descascando a aroeira” - ele entrou dizendo, logo cedo, ao voltar da calçada que costumava espiar todas as manhãs, feito as borboletas que lá voejam. Doido por plantas, flores e folhas, inclusive as secas, em que via uma expressiva mensagem sobre a efemeridade das coisas, Carlos Romero é assim. Um cronista suave feito a brisa que sentia ao visitar esse canteiro, na calçada da rua, onde plantou tantos mimos do qual hoje florescem, além dos pequenos flamboyants, infinitas e gratas recordações.
Aroeira da PraiaCuriosos, fomos olhar a aroeira. Realmente, em alguns trechos, haviam-lhe sido estranhamente retirados grandes pedaços da casca de seu tronco. Quando voltamos para o café da manhã, nossa secretária, um tanto entendida da medicina empírica, foi logo dizendo: “Essa planta é boa para o estômago. Fazem chá da casca”. A posologia foi depois confirmada pelo Google e tudo ficou bem, se era para o bem.
E a aroeira continuou sendo despida sem nenhuma vergonha da strip-tease benfazeja às azias e queimações, tampouco dos transeuntes que não se intimidavam em desnudá-la. Mesmo assim, frondosa e verdejante, demonstrava o ar de superioridade merecida e pertinente ao reino de suas espécies. Apesar de tão depredadas e menosprezadas, as árvores sabem que sem elas não haveria vida alguma pela Terra.
Massa com pimenta rosaCerta vez, caminhando nas vielas de Saint-Paul de Vence, num dos adoráveis périplos pela riviera francesa, e, como gosto de cozinhar, entramos em uma loja de ervas culinárias para comprar uns temperinhos que perfumariam futuras experiências gastronômicas. Depois de escolhidos alguns sachês, entre eles veio um vidrinho com umas bolinhas cor-de-rosa, recomendadas pela moça da loja como saborosas e aromáticas. Ao perceber que éramos brasileiros, disse apontando para o tal recipiente: “essas poivre-roses [no rótulo estava escrito “Baies Roses”] vêm lá do Brasil, vocês não conhecem?” Nos entreolhamos e discordamos. Não, não as conhecíamos. Só depois ficamos sabendo que se tratavam de pimenta-rosa, uma especiaria usada em alguns pratos refinados, polvilhada moderadamente em saladas, canapés, purês e cremes salgados. E o melhor: eram justamente o fruto da aroeira. Aquela cuja casca “é boa para o estômago”.
Claro que papai, patriota como si, ficou todo ancho. Afinal de contas, tinha sido ideia sua plantar uma muda no canteiro da calçada. Agora mais ainda ao saber que ela também era conhecida no exterior, apreciada pelos franceses e vendida até na Côte d’Azur!
Tilápia ao molho de pimenta rosaJá de volta às nossas rivieras, igual ou superiormente melhores do que as outras do mundo afora, os pratos preparados com as pimentinhas-rosas tiveram sabor duplo. Do sutil e aromático paladar e das lembranças de Saint-Paul de Vence.
Um belo dia, para surpresa nossa, já familiarizados com as bolinhas coloridas, descobrimos muitos pés de aroreiras que exibiam cachos e mais cachos exuberantes de poivre-roses, quando pedalávamos pelas trilhas de praias e maceiós do litoral sul. “Olha só!” - exclamamos – “serão elas?” Depois de provar e comprovar, enchemos os bolsos. Sim, eram elas, as próprias. Sem precisar dos euros. Apenas pelo custo dos arfantes e renovados pulmões, cheios de ar puro com gosto de mar.
Em outras viagens, achávamos graça vê-las nas prateleiras das épiceries, custando alguns euros e agora, para nós, só o prazer das brisas tropicais.
Mas a lição que ficou não tem apenas o sabor da pimenta, que nem arde, e nem das boas e eternas lembranças de viagem com a família, sempre em torno do amado pai. Veio junto com a realidade que se evidencia na negligência perante os tesouros nativos que se extinguem com a indiferença e a voracidade do progresso desenfreado e sem controle.
Com as aroreiras, estão indo embora de nossas vistas, saúde e paladar os pés de guajirus, de maçaranduba, pitombeiras, mangabeiras, pitangueiras. Tristes, testemunhamos jardins e quintais, falésias e matas nativas dando lugar à inexorável expansão urbana. Tudo se preparando para ser visto, num futuro sombrio, apenas por fotos ou lembranças do que era verde...
Discordo dos que defendem a tese de que a sensibilidade por vezes deixa as pessoas frágeis, vulneráveis, ameaçadas. Esses vêem o mundo exclusivamente pela ótica da racionalidade, sem compreenderem a linguagem do coração. Os insensíveis são pessoas frias, ausentes de carinho e afeição, indiferentes às belezas da vida.
É verdade que, quando estamos com a sensibilidade à flor da pele, nos magoamos com mais facilidade, nos decepcionamos com mais frequência, nos comportamos na influência do medo. No entanto, nada justifica deixar de dar valor às emoções, potencializar os sentimentos íntimos. As surpresas que a sensibilidade exagerada nos apronta, de forma desagradável, devem ser vistas como alertas na vida, nunca como imperfeições da alma.
A sensibilidade nos permite enxergar grandeza nas coisas mais simples, perceber delicadeza nas atitudes puras e ingênuas, vivenciar a suavidade encantadora da natureza. Quando perdemos a sensibilidade ficamos a um passo da estupidez. Ser sensível é estar sempre pronto a oferecer amor, ser solidário nos momentos de alegria e tristeza, oferecer o abraço amigo nas horas precisas.
A inspiração dos artistas e dos poetas nasce da sensibilidade que brota do espírito. Eles conseguem compreender melhor a alma humana porque são emotivos, traduzem espontânea e francamente as sensações que nos oferecem os prazeres da vida, colocam lirismo nas ocorrências rotineiras do nosso cotidiano. São tocados pela sensibilidade aguçada.
Como afirma Clarice Lispector, “jamais eu quero perder a sensibilidade, mesmo que às vezes ela arranhe um pouco a alma”.