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Em Trastevere, charmoso bairro de Roma, há um pequeno restaurante com uma das melhores cozinhas da cidade. Mas o que chama logo a atenç...

Em Trastevere, charmoso bairro de Roma, há um pequeno restaurante com uma das melhores cozinhas da cidade. Mas o que chama logo a atenção do cliente que ainda não lhe conhece a cozinha é um extraordinário aviso emoldurado na parede: “NON ABBIAMO WI-FI. PARLATE UN PÒ TRA VOI.” Em bom português: “Não temos wi-fi: conversem um pouco entre si.”

Não é incomum, hoje em dia, quatro amigos dividirem uma mesa de restaurante, cada um comunicando-se isoladamente com alguém que não está à mesa, através do celular, como se não houvesse pessoa alguma ao seu lado naquele momento. Ver uma foto, um vídeo, ler ou responder a uma mensagem (coisas que ficam gravadas e podem ser vistas quando se estiver sozinho) ficam sendo algo mais importante e prazeroso do que conversar com as pessoas com quem você combinou de encontrar-se e que estão ali, ao lado, com a sua presença viva, tornando possível o milagre que é compartilhar um instante único e irrepetível.

Eu tinha 9 anos quando Jânio Quadros, candidato a presidente, esteve em Campina Grande. Naquele tempo, apesar de o Grande Hotel, um ple...

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Eu tinha 9 anos quando Jânio Quadros, candidato a presidente, esteve em Campina Grande. Naquele tempo, apesar de o Grande Hotel, um pleno “Art Déco” bem razoável para a época, ainda estar em funcionamento, era comum pessoas “importantes”, de passagem pela cidade, hospedarem-se na casa de um dos numeráveis ricos.

Eu morava na Nilo Peçanha, esquina com Buenos Aires (nome que me fascinava, sem que eu soubesse por quê), e fiquei sabendo que Jânio estava hospedado na casa de Camboim,

    HOZANETE (Para minha irmã – in memoriam) Quantos não diziam Que eras difícil, impulsiva, intratável, Que eras rigoros...

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HOZANETE
(Para minha irmã – in memoriam) Quantos não diziam Que eras difícil, impulsiva, intratável, Que eras rigorosa, inflexível, Que eras, às vezes, sobranceira, Que eras apenas certezas, Que eras recalcitrante, intolerante!? Fiquei achando que só tinhas defeitos. De-repente-a-noite-universal-visita-a-família- Sem-mandar-telegrama E te rouba os terríveis todos defeitos, E tu ficaste tão silenciosamente boa, Tão insuportavelmente tolerante, Na tua indiferença!

    alguma coisa, alguma linha, algo há de escapar insétil. dúctil, mas indócil, leve, mas indelével, há de manter-se presente. n...

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alguma coisa, alguma linha, algo há de escapar insétil. dúctil, mas indócil, leve, mas indelével, há de manter-se presente. não há de ser, inevitavelmente, aroma (a maresia habita igual o poema), mas há de eludir o tempo.

Da janela do meu apartamento, vejo o quintal da casa lá embaixo. Largada, ao lado da churrasqueira, uma pequena bicicleta. Sob uma árvore,...

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Da janela do meu apartamento, vejo o quintal da casa lá embaixo. Largada, ao lado da churrasqueira, uma pequena bicicleta. Sob uma árvore, uma mesa, na qual repousa um chapéu branco, possivelmente tricotado, de abas largas, ao lado de um par de luvas de cozinha. Próxima à mesa, uma antiga cadeira de balanço. Não conheço as pessoas que moram na casa, e, vistos assim, sem pertencimento, esses objetos não transcendem sua condição material, genérica; vale dizer: carecem da singularidade que só uma pessoa (um “dono”) a quem pertencessem lhes doaria. Tautologicamente: esses objetos, como os vejo agora, não passam de objetos.

Diante do caixa, olhando a capa da edição crítica de A paixão segundo G. H ., que a mão acariciava, enquanto o coração se afogava no tempo...

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Diante do caixa, olhando a capa da edição crítica de A paixão segundo G. H., que a mão acariciava, enquanto o coração se afogava no tempo esvaído, as lágrimas começam a descer devagar, mas continuamente. A moça do caixa pergunta-lhe: ​

– Senhor: o que se passa? O senhor está bem?

Enquanto a pergunta o fazia regressar ao instante da experiência daquele momento, sem saber por que, lembrou-se de “Casa tomada.”

Se há um tipo de texto que prioriza o sortilégio das palavras (mesmo que em detrimento do conteúdo) à procura de um encanto, este tipo de ...

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Se há um tipo de texto que prioriza o sortilégio das palavras (mesmo que em detrimento do conteúdo) à procura de um encanto, este tipo de texto é a crônica. Bem sei que todo texto literário faz um uso retórico das palavras e procura encantar, mas um romance (ou um conto, um poema) tem (ou procura ter) uma densidade que uma crônica não ambiciona alcançar – em outras palavras: tudo que é dito pela crônica é supérfluo, ou, ao menos, secundário: o que importa mesmo é o jeito como a crônica se diz.

Quando criança, eu costumava convocar Deus para consertar tudo: de falta de ar a brinquedo quebrado. Minha mãe, que acreditava com convicç...

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Quando criança, eu costumava convocar Deus para consertar tudo: de falta de ar a brinquedo quebrado. Minha mãe, que acreditava com convicção em Deus e me amava com fé, saía do sério, colocava a fé em crise e me admoestava com firmeza, insistindo para que eu não invocasse o nome de Deus em vão. Lentamente, fui aprendendo a lição; gradualmente, fui guardando Deus para as situações limites. Por isto, causa-me sempre grande espanto a convocação diuturna de Deus para a resolução de tarefas que qualquer ser humano normal pode levar a efeito; principalmente, causa-me indignação e repulsa a convocação de Deus para atos que desmerecem ou até negam os princípios de qualquer religião.

Algumas pessoas que leram a crônica “ O vendedor de milho ” perguntaram-me, preocupadas, por onde andava o vendedor de milho. Aderindo ao ...

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Algumas pessoas que leram a crônica “O vendedor de milho” perguntaram-me, preocupadas, por onde andava o vendedor de milho. Aderindo ao sentimento do narrador da crônica, elas têm toda razão em fazer eco à dúvida dele, mas será que elas também poderiam ter lido o texto numa perspectiva meramente ficcional, sem perder o sentimento?

Na província em que o garoto morava, ainda não havia televisão: o cinema e os gibis (as revistas em quadrinhos) formavam o imaginário de c...

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Na província em que o garoto morava, ainda não havia televisão: o cinema e os gibis (as revistas em quadrinhos) formavam o imaginário de crianças e adolescentes do seu tempo, e o faroeste era o gênero preferido daquela molecada.

Eu estava deixando a pequena Santa Luzia, onde nasci e me criei, onde podia desmaiar na praça sem medo (pois alguém iria me deixar em casa...

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Eu estava deixando a pequena Santa Luzia, onde nasci e me criei, onde podia desmaiar na praça sem medo (pois alguém iria me deixar em casa), a cidade que eu podia levar no bolso, para ir morar em Campina Grande, uma cidade grande, onde qualquer desconhecido poderia me botar no bolso a adolescidade.

Como eras minha, se deixaste de ser? Pouco importa que a lógica diga que tudo que é deixará de ser; ou que o que é só é porque promete que...

Como eras minha, se deixaste de ser? Pouco importa que a lógica diga que tudo que é deixará de ser; ou que o que é só é porque promete que deixará de ser; ou que, na dialética metafísica, o não ser é que dá substância ao ser. Eu não quero esta ciência. Eu preferiria o inteiriço nada, na sua plenitude de não desfazer-se, do que ter-me sentido pleno e hoje ser apenas fragmentos de nada.

Eu posso afirmar, com certo grau de verdade, muita coisa sobre a Iracema de José de Alencar, figura de ficção, mas não posso afirmar quase...

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Eu posso afirmar, com certo grau de verdade, muita coisa sobre a Iracema de José de Alencar, figura de ficção, mas não posso afirmar quase nada sobre Iracema, pessoa tangível, minha vizinha.

Para Genilda – meu dicionário amoroso Menino pobre, afora os livros da escola, um único livro ocupava, soberano, a pequen...

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Para Genilda – meu dicionário amoroso

Menino pobre, afora os livros da escola, um único livro ocupava, soberano, a pequena estante (vazia) da minha infância: um pequeno dicionário, de José Baptista da Luz, que tinha como seu auxiliar o que seria o futuro famoso Aurélio Buarque. Este pequeno dicionário foi a raiz do consagrado dicionário de Aurélio. Minha querida irmã mais velha, que costumava decidir o que interessava aos irmãos e jogar fora as coisas, sem pedir licença ao dono, usando de sua generosidade excessiva, transferiu o único patrimônio da família para uma colega de trabalho.

A manhã de João ficou feliz quando o contido Antenor lhe falou com entusiasmo sobre uma colega do curso de Química que o tinha encantado. ...

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A manhã de João ficou feliz quando o contido Antenor lhe falou com entusiasmo sobre uma colega do curso de Química que o tinha encantado. Como naquela época ainda havia flerte, apresentação, conversa, aproximação, antes do namoro, levou algum tempo até o domingo em que Antenor apresenta sua namorada a João. Os três conversaram um pouco e João fica de ir à casa de Antenor no mesmo domingo, à tarde. Despediram-se, e João saiu perguntando aos seus botões como alguém poderia ficar encantado com uma “obra” daquelas.

Qualquer leitor brasileiro já ouviu falar de Graciliano Ramos . Capítulo de todos os manuais de literatura, tópico em inúmeros vestibular...

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Qualquer leitor brasileiro já ouviu falar de Graciliano Ramos. Capítulo de todos os manuais de literatura, tópico em inúmeros vestibulares, unanimidade para a crítica especializada e editado em larga escala (a julgar pelo número de edições de seus livros), parece desnecessário falar da importância de sua obra. Há, no entanto, um livro de Graciliano que é completamente esquecido (embora com muitas edições) por parte da crítica especializada: "Insônia". "Insônia" é um livro tão ignorado pela crítica que, até a sua 29ª edição, não tinha nenhum prefácio ou posfácio. Ironicamente, um prefácio que circulou em algumas poucas edições anteriores falava genericamente sobre a obra de Graciliano; não sobre "Insônia".

“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enla...

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“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.)
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes.”

Em Campina Grande, no final dos anos 50, a palavra “assustado” passou a designar encontro dançante, com ou sem bebida, realizado de surpre...

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Em Campina Grande, no final dos anos 50, a palavra “assustado” passou a designar encontro dançante, com ou sem bebida, realizado de surpresa nas garagens ou nas salas das casas, e tirou o sossego de alguns pais. A moda, ou o imperativo categórico, era promover e freqüentar assustados, e adolescentes, rapazes e moças só falavam e pensavam nisto.

Conversar é coisa que as pessoas fazem há milênios, hábito tornado natural, e, sendo conversa amistosa, deveria ser sempre algo agradável,...

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Conversar é coisa que as pessoas fazem há milênios, hábito tornado natural, e, sendo conversa amistosa, deveria ser sempre algo agradável, mas nem sempre saímos de uma conversa serenos. Há pessoas que conversam com alegria e descontração e ao deixá-las saímos com aquela sensação de leveza que nos ajuda a levar o mundo nos ombros. Outras pessoas há que tornam a conversa insuportável e a vida um tsunami: são as “carpideiras”.

Marruá era o apelido de João. No breve tempo em que participou de nossas brincadeiras diárias, nós o chamávamos de João. Sobrenomes não exis...

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Marruá era o apelido de João. No breve tempo em que participou de nossas brincadeiras diárias, nós o chamávamos de João. Sobrenomes não existiam entre os pequenos, e nunca vim a saber o dele. Apenas um pouco mais velho do que os meninos de minha geração, a alcunha seria batismo dos carregadores, ao comprovar a força e capacidade de trabalho de João. Bem mais pobre do que nós, logo as generosas sacas de açúcar e de farinha alistaram sua força, e passamos a encontrar João somente aos domingos de manhã, no racha da Sovaqueira, única generosidade do capital selvagem àquela mal inaugurada adolescência.

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Sem direito a escola, seus colegas carregadores, alguns adultos, outros quase maduros, se encarregaram da docência, e João, que a partir desse convívio seria Marruá até o fim, com idade de ser iniciado em Monteiro Lobato e nas coisas do coração, foi iniciado em Carlos Zéfiro, no bordel e na cachaça.

Os professores de João não precisaram de muita didática: a pedagogia do cansaço, dia após dia, e a ausência de qualquer possibilidade de sonho arrastaram definitivamente o ingênuo João para o oblíquo acalanto das garrafas e para o submundo dos pobres corpos que se alugam. Mas o dinheiro era curto. Muito curto. Quase todo ia parar nas mãos do pai de João, que ganhava outra migalha, e tinha a mãe e mais três crianças em casa para sustentar. E Marruá, que passou a brincar com Baco e Vênus, deu adeus à Sovaqueira, abraçou as cargas até no domingo e passou a sorver, todos os dias, toda a aguardente vagabunda que cabia em seu curto bolso.

Em todo o bairro da Prata, Marruá era conhecido pela força e pela capacidade de trabalho. Entre uma saca de fubá e uma saca de arroz, ele dilatava o tempo e limpava um quintal, arrancava um tronco recalcitrante, ajudava a limpar uma fossa... Não escolhia trabalho. Admirado por seus braços, também o era pela quantidade de cachaça que sorvia em grandes goles, boca na garrafa, sem nunca perder um gole para o santo ou cuspir algumas gotas, nojento gesto habitual entre os cachaceiros, que sua sede dispensava.

Mas os professores de Marruá só puseram no quadro-negro o açúcar da cana e os encantos de Vênus. Marruá não decifrava o nome aguardente, e os 38 graus iam derretendo seus músculos e nervos. Marruá não conhecia os abismos de Vênus, e a ordinária deusa, ao lhe vender minutos de prazer, deixava-lhe tatuagens na pele e na veia, que a ignorância grande e o curto dinheiro não podiam apagar.

Marruá foi regressando a João. A princípio, a custo carregava a saca de 60 quilos, que já não erguia. Depois, os músculos, lassos, nem as carregavam mais; só aceitavam sacos menores, e isto, além da zombaria, encurtava os já pequenos ganhos. Marruá, embora continuasse sendo chamado assim, via a sua força se esconder e os sacos começarem a sumir. Restavam pequenos biscates, que mal financiavam seu vício. Marruá, que era a viga mestra da família, despencara sobre si mesmo, e agora a vida virava areia movediça.

Quase sempre sem um tostão no bolso, passou a fazer ponto à porta de Seu Cristino, de quem varria a calçada e a bodega, em troca de uma sobra do almoço e um pouco de cachaça, que o bodegueiro só lhe entregava no final do dia. Ao longo do dia, seguia pedindo a um e a outro cachaceiro que lhe pagasse uma lapada.

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Alguns porcos (animal que costuma travestir-se de gente) com algum dinheiro na alma e nenhum escrúpulo no bolso diziam com um sorriso de hiena: “Só pago se for uma garrafa: e você tem de tomá-la todinha enquanto eu estiver aqui”. E Marruá, num lasso sorriso de sede, tragava inteiro o áspero vidro, embora algum tempo depois fosse delirar o resto do dia na calçada da bodega. Mas, depois de um certo tempo e muitas garrafas, os vis reptos dos porcos já não abriam o sorriso de Marruá – o juízo já não suportava aquela medida: três lapadas já o colocavam em órbita, e tudo que ele conseguia era ofender-se e, na sua lhanura, emudecer.

Marruá continuava a fazer ponto na bodega de Seu Cristino, onde, entre uma zombaria e outra, pedia que lhe pagassem uma, e passou a pedir comida nas casas. Sua fama de forte foi completamente apagada, mas, embora o nosso campeão da garrafa agora mal vencesse um copo, os recordes que batera na bodega de Seu Cristino, no auge de seu vigor, permaneciam como referência na mitologia do bairro, e o nosso pobre-diabo continuou sendo o padrão mensurador dos cachaceiros da Prata.

Uma das casas a que prestou muitos serviços e em que agora costumava pedir uma sobrinha de comida era a casa de Seu Antônio e Dona Cristiana. Este casal de idosos, com seu pequeno horizonte de informações, vivia disputando o troféu do saber. Os dois estavam vendo o jornal da noite. Uma das manchetes anunciava o ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Dona Cristiana, do alto de sua ânsia de saber e de desafiar o marido, indaga-lhe: “E o que é esse Prêmio Nobel, Tonho?” E Seu Antônio, com o orgulho e a felicidade de poder ilustrar, com todo o seu saber, a mulher, responde-lhe: “Cristiana: tu não sabes que é um prêmio que se dá ao melhor do mundo?”. Dona Cristiana, não satisfeita ainda, insiste: “Dá um exemplo, Tonho.” Seu Antônio, na bucha: “Por exemplo: Marruá, na cachaça.” E dona Cristiana, por entre dentes: “Exemplo bom, este, viu?”

Ao menos como figuração, Marruá foi agraciado com o Nobel, e, sem que o soubesse, o nosso João “subiu ao céu, num avião de papel.”


Antonio Morais Carvalho é professor e poeta