“Você é um subversivo!”, gritou o colega ao telefone.
Fui pego de surpresa. Subversivo? Eu? A palavra, a princípio me pareceu familiar. Há muuuitos anos eu não escutava isso.
Tudo começou com uma discussão, a princípio saudável, com meu grande amigo, antigo colega, que vivenciou comigo momentos agradáveis. Falávamos sobre o momento político atual. Eu criticava o presidente, dizia que era medíocre e ele defendia.
Foi quando comecei a dar fundamentação à minha opinião, ele sentiu-se encurralado, e reagiu como reagiam no passado de nossas discussões políticas, quando a razão fugia: fazendo ataques pessoais ao dono da opinião divergente, dizendo que é comunista, petista e outros epítetos.
Subversivo, eu? A palavra me soou mágica. Foi quando eu voei no tempo (acho que não tenho a doença de Alzenheimer pois ainda consigo voar no tempo e dele retornar!). Voltei 50 anos no passado, pousando suavemente em 1968.
Foi um ano mágico! Quantas coisas aconteceram, boas e más. Nesse ano o Botafogo foi campeão carioca. O filme 2001 Uma Odisséia no Espaço foi o grande lançamento do ano. Concordo com Zuenir Ventura: 1968 começou e não terminou.
Lyceu ParaibanoFoi o meu primeiro ano no científico do Liceu Paraibano. Nova turma, novos colegas, novas amizades. Nova mentalidade, a puberdade se havia ido embora, depois de muito brincar no ginásio eu finalmente me tornara um adulto responsável.
O Liceu dos anos 1960 era um lugar mágico. Um estilo de vida estudantil totalmente diferente do que eu tinha experimentado, até então. Fascinante! Liberdade total, diferente dos outros colégios até então. Só passava quem tivesse responsabilidade. E como eu estudei! Sem deixar de brincar, aprendi a dosar. O Grêmio Estudantil era onde nos encontrávamos, nos intervalos, para jogar xadrez, ouvir música e discutir política.
Estávamos no quinto ano da ditadura militar. Mas em 1968 começamos a respirar um clima primaveril que varreu o mundo todo. Aqui não foi diferente. Prenunciavam-se mudanças. Discutia-se a implantação de uma política de ensino importada dos Estados Unidos, a qual os estudantes brasileiros repeliam com veemência. Tratava-se do Acordo MEC-USAID, que até hoje eu não sei o que era.
Misturando com os estudos participei ativamente como representante da classe, pichando paredes e distribuindo panfletos. Foi o ano das grandes passeatas. Reuníamos-nos em frente à catedral. Depois caminhávamos em direção ao Palácio do Governo, uma multidão na contramão. Geralmente não conseguíamos chegar até a Praça João Pessoa, dos Três Poderes, porque a polícia baixava o cassetete antes disso.
Protestávamos sobre tudo: liberdade de imprensa, preço das passagens, guerra do Vietnã, liberdade de opinião. E principalmente contra a ditadura militar.
Numa dessas passeatas fomos dispersados violentamente pela polícia, ao entrarmos no beco da rua Conselheiro Henriques. Eu estava com uma companheira de atividades subversivas, Mone Pessoa, irmã de meu colega e amigo João Alberto Pessoa. Eu poderia ter corrido, mas deixá-la-ia sozinha no meio de três policiais armados de cassetetes e espingardas. Não consegui socorrê-la. Resultado: apanhamos os dois!
Lá pra setembro ocupamos por três dias o Cassino da Lagoa, onde à época funcionava o CÉU - Clube do Estudante Universitário. A polícia militar nos desalojou debaixo de cacete, inclusive quebrando a radiola na hora em que tocava o Hino da Liberdade: “Já podeis da pátria fiiilhos...”
Depois, ocupamos por iguais três dias a FaFi, Faculdade de Filosofia. Desta vez quem nos expulsou “pacificamente” foi a Polícia Federal. Nesse momento tive a oportunidade de assistir a uma cena que me marcou até hoje.
Enquanto os policiais, armados de metralhadoras, nos botavam para fora e fechavam as portas da FaFi, Everaldo Júnior subiu numa balaustrada e fez um discurso violento contra a ditadura, a PF e o Superintendente da PF à sua frente, sujeito chamado Emilio Romano, que assistiu contricto, trêmulo, porém impassível.
Ao longo da semana nos reuníamos secretamente para ler ou ouvir o que era proibido. Lembro-me de ter escutado secretamente o disco da peça Arena Canta Zumbi, num quarto dos fundos da casa de Karlov Neves de Lima, irmão de Babi. Era a época do “É proibido proibir!”
Antigo Clube Cabo BrancoNos fins de semana nos divertíamos muito singrando as noites de João Pessoa. Durante a semana tinha o xadrez e o gamão do Esporte Clube Cabo Branco. Nos fins de semana tinha o Jantar dançante do Clube Cabo Branco, as noitadas no Elite Bar, Zé Rubens Jangada dando um show de bateria, especialmente no samba-rock.
Tinha a Toca do Coelho, onde passávamos quase a noite toda dançando em 1 metro quadrado de pista, coladinhos. Depois podíamos finalizar a noite na churrascaria Bambu, no bordel da rua Maciel Pinheiro ou no Independente Atlético Clube.
Pois foi justamente tudo isso o que o amigo me evocou, essa deliciosa volta ao passado, ao pensar que estava me ofendendo. Na idade em que eu estou, ser assim chamado chega a ser até lisonjeiro.
“Subversivo!” Não me ofendi. Respondi, agradecendo:
Chegou ao mundo num cômodo de paredes desbotadas da casa da cancela, de cuja janela frontal o pai, guarda fiscal, pastorava as idas e vindas dos carros meio vazios, meio carregados de quartos de bodes e feixes de caroá, a fim de, pelo seu temperamento, mais indultar do que cobrar a derrama da época. O pai trazia em si uma generosidade inata, que tangenciava a vaidade. Nunca se soube definir direito aquele sentimento: bondade ou orgulho? Mas, orgulho do quê, haveria de ter o pai? De uma suposta ancestralidade nobre perdida nas brumas da fantasia? Da honestidade decantada pelo meio milhar de compadres que lhe tomavam a mão para tutelar e exemplar seus primogênitos? Dos cabelos negros, inteiros da fronte até à nuca, algo castiços, sempre cuidadosamente engomados? Do nariz adunco projetando-se sobre os lábios finos, herança mourisca de priscas eras? Das necessidades poucas, estoicas, desde o de comer até as festanças? Não sei... Vá ver que era daquela doçura mesma, que, com olhos marejados, ele expressava na fácies quando contemplava algum desses pequenos. Coisa de pai-avô. Casou maduro, passado do ponto. Tanto que pôs todos a perder com essa delicadeza inapropriada em tantos momentos em que a palmatória teria sido a solução, o ponto final em causos nos quais não se via o bom termo.
O fato é que eram tempos difíceis, como difícil era arrancar daquele torrão árido alguma réstia de umidade fora da breve e errônea estação das águas: precisava-se cavoucar léguas, intestino da terra adentro, ainda que às margens do que fora um caudaloso rio na última enxurrada. Como um bêbado - arquétipo abundante por lá, aliás -, cujo balouçante tropeçar não se sabe se e quando o conduzirá para casa, assim o era o inverno naquilo que se convencionou chamar Quadrilátero das Secas, mercê de algum arranjo da politicalha sempre atenta na cabala dos minguados votinhos do vilarejo. Nome bonito, pomposo, mas de serventia nenhuma, exceto confundir ainda mais a já insignificante representação da região nos mapas escolares.
Não havia produção regular de nada; só o acinzentado do horizonte, marchetado pelo azul incandescente do céu sem nuvens e pelo esverdeado de uma longínqua cúpula de umbuzeiro, soldado valente de um exército exaurido de sede. Uma cabra aqui, outra acolá, mascando a gosma tóxica e cáustica produzida pelo avelós, era o que se via de criação. O alimento de uma rês bovina, o farelo ensacado, tornava-se rapidamente mais caro do que sua própria cabeça. E até a palma forrageira, essa heroína, só suportava até certo ponto as temperaturas vulcânicas do estio implacável da caatinga. Depois, perdia a seiva e descangotava o pescoço, qual mamulengo triste que chorasse a falta d’água. O gado, coitado, abandonava as forças e se deitava no pó, com as costelas furando a pele macilenta e o olhar melancólico num barreiro esturricado qualquer. Aí só a tipoia para o manter de pé mais alguns dias, antes do fim. Um lugar pobre, afinal; pobre de Jó. Só a desnutrida prefeitura mantinha algo de vida naquela paisagem surreal, pagando mês sim, mês não, derréis disputados apaixonadamente pelos aliados da facção ora entronada.
Voltando ao moleque, ficou mouro mesmo, que nem o pai, exceto pelo nariz adunco, que não herdou, e acrescido de umas sardas salientes pelas frontes, enquanto os outros saíram aos galegos sararás do brejo sumarento das bandas do Sul. Sobrolhos espessos emoldurando olhos perscrutadores do fundo das coisas. Com a sorte entregue às moiras, por um milagre não teve o fio da vida cortado já no primeiro segundo em que, aos engasgos, chegou aos seus.
A mãe, mulher pequena, pele clara, cachos acobreados caindo na testa, mais sedutora do que bonita, contou que as estocadas agudas que prenunciaram a chegada da raspa de tacho começaram à boca da noite, quando, na calçada alta, as comadres tricotavam em bilros a vida do minúsculo município. Certo momento, com as ancas alquebradas de parturiente pedindo clemência, foi lá para dentro, recolher-se na cama de jacarandá, anciã de molas barulhentas, herança de sabe-se lá qual antepassada. Decidira aguardar deitada o rompimento do invólucro que mantinha atado a si aquele que seria seu quarto filho, engendrado ali, no cariri ressequido de chuvas, todavia pródigo de presságios. Estava tranquila. Tinha fama de boa parideira: rápida em expulsar do conforto uterino o vitelo que gerara. A bem da verdade, esse moleque vingara por sua conta e risco, aproveitando-se, matreiro, de um descuido entre regras mal anotadas. Três era uma boa prole. Avara, inclusive, num tempo em que o eito pedia oito ou dez. Mas não havia eito. A mania do pai era educar todo mundo na capital. Não aceitava ver rapazes sem estudar, arando calhaus velhos de terra, valendo pouco mais ou nada. Sensato, o pai. Sempre sensato. Nunca quis outro espólio do velho atarracado de bigodes fartos que lhe educara senão um surrado relógio de algibeira, cuja tampa em metal nobre, enfeitada de arabescos, soava uma sineta ao ser aberta.
Às horas tantas, a natureza desembainhou seu cutelo. Era chegado o momento em que a mulher, sozinha na sua agonia e, ao mesmo tempo, na maravilha de dar à luz, estrebucha de dor e alegria. A mãe rogou pela parteira amblíope, de feições caucasianas, que a socorria nesses decisivos instantes. O pai saiu do quarto. Elas e ninguém mais, na atmosfera baça, higienizada pelos vapores da água fervente, haveriam de se entender.
A barra surgiu, tingindo de amarelo-ouro a encosta da serra; o sol agigantou-se no firmamento, esquentando o lombo dos lagartos e das gentes. E nada de coroar. Angústia a não mais poder. A miúda protagonista gemia entredentes os terrores de todas as mães, suplicando a São José, pai de Cristo e devoção da casa, pela sua própria e pela sorte daquela entezinho que hesitava em chegar, por mais força que ela fizesse. Lá pelas onze, exangue pela dilatação máxima, a mãe emitiu um som gutural, enquanto se mostrava pela abertura ensanguentada um pequeno crânio, redondo como uma melancia, envolvido pela placenta e enlaçado pelo rugoso cordão umbilical. Daí por diante, travou-se a luta do rochedo com o mar. Com mãos de prestidigitadora, a parteira conduziu delicadamente o pequeno ser de volta ao canal de parto para, numa manipulação às cegas, tentar desenlaçá-lo, ironicamente do tubo pelo qual sorvera os nutrientes que lhe permitiram aportar ali, do ventre penumbroso e liquefeito para o lume frio da casa da cancela, àquelas horas de Deus. Uma noite e um dia se consumiam nessa peleja.
O crepúsculo chegou com a mãe desacordada e aquele trapinho, roxo como uma estola episcopal, no colo da parteira. “Chame o padre, para seu menino não morrer pagão”, disse ela, grave, mirando o pai, enquanto enxugava a face gotejante de suor. “A mãe só precisa de água de beber e sossego”, e deu o bom combate como encerrado. Por teimosia ou confiança, o pai não se moveu da cadeira. Deixou que o manto suave do breu cobrisse o mundo, seus extenuados convivas, e entregou-se, ele próprio, a uma vigília confusa.
Lá para os lados da Serra da Engabelada, uma velha coruja arregalou ainda mais os olhos cintilantes, piou forte, um pio de arauto para se impor aos notívagos de todos os clãs, e bateu as asas poderosas contra a silhueta prateada da lua, celebrando, num voo monumental, a chegada de mais um filhote no seu território.
Pois assim que a ampulheta virou e a nova alvorada perpassou as telhas vãs, rastreando de luz o piso de gastos mosaicos, a mãe criou tento, apoiou-se nos cotovelos, içou-se da cama e, arrastando penosamente as pernas inchadas, dispôs o peito latejante de colostro à ávida sucção do rebento, que dormitava sob os panos, com a respiração curtinha de um cabrito. Mal ele pegou a auréola intumescida do mamilo com a boquinha ansiosa, o ar puro e cauterizador abriu caminho pela traqueia, chegando até os pulmõezinhos constipados de muco. E a pele arroxeada, grudenta com os restolhos da peleja, ganhou um matiz avermelhado, sanguíneo, e como que se descongestionou, acomodando mãe e filho naquele idílio de vida.
Os propósitos acadêmicos de perpetuação das tradições literárias e de estímulo à cultura geral obrigam a pensar na escola, de um modo genérico, e de um modo mais específico na universidade, como espaços privilegiados de convivência e de interferência renovadoras. A memória cultural, a pesquisa e o ensino, integrando-se, como partes que são de um mesmo universo e de um mesmo processo.
Referendo a visão pedagógica conferindo ao papel do professor a dignidade que lhe é inerente. Dignidade historicamente reafirmada na resistência anônima que o sistema explora e finge ignorar.
Foi assim que um dia, inspirada pelos ideais de Paulo Freire, transformei jornais velhos em texto didático, ousando levar para as aulas de Português do Colégio Estadual autores paraibanos ainda não estudados: Eduardo Martins, Virgínius, Gonzaga Rodrigues, Vanildo Brito, J. J. Torres, Natanael Alves, Aurélio Albuquerque, Juarez da Gama Batista etc. Era no tempo em que o livro didático tinha distribuição escassa ou inexistente, em contraste com o esbanjamento incentivado de hoje.
Aproveitando jornais velhos, os alunos aprendiam a valorizar o aparentemente inútil; desenvolviam o hábito da leitura e da pesquisa; organizavam seus próprios livros, sem qualquer custo econômico; integravam-se à realidade pelo conhecimento do autor contemporâneo; garantiam material didático para o estudo de texto, objetivando a superação da gramatiquice dominante; enfim, participavam e comprovavam que as dificuldades podem ser vencidas.
Um dia, Luiz Augusto Crispim amanheceu escrevendo em sua crônica que "Ângela Bezerra desencantou o escritor paraibano." O cronista recuperava, na sedução da palavra mágica, essa história de mais de trinta anos. Foi o maior título que já recebi.
Ângela Bezerra de Castro é professora e crítica literária
Nunca fui de acreditar muito em sorte. Sempre achei que ela existia, mas dentro de circunstâncias maiores, e que nós, tínhamos sim, uma responsabilidade em fazê-la acontecer. Ficar esperando sentada alguma coisa, não me dava muita fé em realizar algo caído assim do céu. Por isso que, quando ouvia alguém dizer: “Fulano/a tem muita sorte! Olha lá a vida dele/a...”, eu sabia no íntimo que de alguma maneira, aquela pessoa havia corrido atrás, pulado no abismo sem rede, para conseguir sua conquista. Sempre achei que somos sim, protagonistas da nossa história. Mas, isso não me deixava totalmente descrente da sorte. Misteriosa, ela existia de alguma forma.
Outro dia, conversando com pessoas queridas, ouvi o relato de uma delas, sobre como namorou pessoas, foi embora pra outra cidade, fez concurso público, acabou namoro, assumiu posto, encontrou novo amor, casou, etc e tal… e fiquei a pensar. Olhando de fora, parece sorte. Mas não é! Essa pessoa tomou as rédeas do seu cavalo, como diz tão bem o ditado popular: “A sorte/felicidade é um cavalo selado que passa na sua janela!”. E essa amiga, penso eu, pulou no seu cavalo sem destino, criando assim o seu destino, que foi de final feliz. Nem sempre o é, pois das nossas escolhas o resultado quase sempre é uma incógnita.
Uma outra pessoa, que foi casar e morar no exterior, a mesma coisa. A mãe estava sempre a dizer: “Aquela moça tem sorte!” Qual nada! Ela escolheu, tomou decisões, se aventurou e encontrou seu caminho. Ou o desenho dele. O fator sorte? Claro que existiu nos dois casos, mas é apenas um dos ingredientes, que sem o poder da escolha soberana, nada aconteceria.
Qual minha surpresa? Lendo a crônica “Mazal Tov”, de Letícia Wierzchowski, escritora e roteirista, autora de "A casa das sete mulheres", me deparo com seu texto sobre a sorte.
Letícia fala do ano novo, do espírito de renovação, das suas listas (me identifiquei, porque também faço as minhas, com possíveis e inimagináveis desejos) e do seu papo com um rabino de Porto Alegre, onde mora. A conversa foi sobre um dos pilares da religião judaica, a circuncisão, que é feita nos meninos sempre no seu oitavo dia de vida. Nesse momento o menino recebe os votos do rabino de boa sorte, que em hebraico, é Mazal Tov. E o rabino explica o que significa a palavra e a sorte, na crônica de Letícia:
“Mazal é um acróstico de outras três palavras: uma delas quer dizer local. A sorte, portanto, depende do lugar onde você está. A segunda palavra do acróstico quer dizer Tempo. A sorte depende do tempo no qual você vive. E, por fim, a terceira palavra que compões mazal é estudo.
Então, a sorte ensejada na religião judaica não e aleatória nem trivial. Ela depende da conjunção desses três fatores para se realizar. Local, tempo e preparação. É uma sorte na qual atuamos também, e não apenas o divino....E sim, precisamos estar preparados para os nossos sonhos, precisamos estar prontos para os nossos desejos, alinhados com o nosso projeto, de gavetas arrumadas para as mudanças que almejamos realizar. Temos um papel importante dentro do imponderável, um papel fundamental e não podemos nos furtar a ele.”
Compartilho com Letícia quando diz: “É tão fácil reclamar que a gente está com azar… Mas estamos preparados para tudo que desejamos? Fazemos a nossa parte, esse um terço do mazal tov?”
Portanto, as amigas citadas e mais outro tanto de exemplos que temos nos arredores da vida, de pessoas que têm sorte, também têm lugar, tempo, circunstâncias e aprendizado, se organizam em uma teia de possibilidades e disponibilidades para que as coisas e a vida aconteçam. E aí muita atenção para, toda vez que dissermos: “Aquele/a tem tanta sorte!”, que a gente pense no local, tempo e sabedoria que essa pessoa e suas circunstâncias tiveram que atuar, brigar e principalmente escolher, para que a sorte se instalasse.
No final, cada um de nós temos sim, a possibilidade da escolha. Estamos a escolher a cada minuto das nossas vidas. Fazemos isso tanto inconsciente como atenta e deliberadamente. Quero ficar ainda mais de olhos bem abertos, para correr como Lola!; escolher o caminho de Robert Frost; a Melinda de Woody Allen; e pular sim, nos abismos que fazem parte do meu latifúndio.
Eu só queria ter a capacidade de reconhecer e montar sempre o cavalo do meu destino. Construí-lo, ser sua dona, ou pelo menos sua protagonista e sujeito das minhas escolhas, saber reconhecer esse vulto que me assobia da janela, e ter sempre a consciência de, como disse Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, também.
No dia do meu aniversário, sempre recomeçando o signo de Aquário, me desejo Mazal Tov! E a vocês também, que assim como disse Letícia, para começar um ano bom, desejo , de um verão iluminado, essa palavrinha hebraica para todos.
Mazal Tov!
“A prontidão é tudo!” (Shakespeare em Hamlet)
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora
“Estão descascando a aroeira” - ele entrou dizendo, logo cedo, ao voltar da calçada que costumava espiar todas as manhãs, feito as borboletas que lá voejam. Doido por plantas, flores e folhas, inclusive as secas, em que via uma expressiva mensagem sobre a efemeridade das coisas, Carlos Romero é assim. Um cronista suave feito a brisa que sentia ao visitar esse canteiro, na calçada da rua, onde plantou tantos mimos do qual hoje florescem, além dos pequenos flamboyants, infinitas e gratas recordações.
Aroeira da PraiaCuriosos, fomos olhar a aroeira. Realmente, em alguns trechos, haviam-lhe sido estranhamente retirados grandes pedaços da casca de seu tronco. Quando voltamos para o café da manhã, nossa secretária, um tanto entendida da medicina empírica, foi logo dizendo: “Essa planta é boa para o estômago. Fazem chá da casca”. A posologia foi depois confirmada pelo Google e tudo ficou bem, se era para o bem.
E a aroeira continuou sendo despida sem nenhuma vergonha da strip-tease benfazeja às azias e queimações, tampouco dos transeuntes que não se intimidavam em desnudá-la. Mesmo assim, frondosa e verdejante, demonstrava o ar de superioridade merecida e pertinente ao reino de suas espécies. Apesar de tão depredadas e menosprezadas, as árvores sabem que sem elas não haveria vida alguma pela Terra.
Massa com pimenta rosaCerta vez, caminhando nas vielas de Saint-Paul de Vence, num dos adoráveis périplos pela riviera francesa, e, como gosto de cozinhar, entramos em uma loja de ervas culinárias para comprar uns temperinhos que perfumariam futuras experiências gastronômicas. Depois de escolhidos alguns sachês, entre eles veio um vidrinho com umas bolinhas cor-de-rosa, recomendadas pela moça da loja como saborosas e aromáticas. Ao perceber que éramos brasileiros, disse apontando para o tal recipiente: “essas poivre-roses [no rótulo estava escrito “Baies Roses”] vêm lá do Brasil, vocês não conhecem?” Nos entreolhamos e discordamos. Não, não as conhecíamos. Só depois ficamos sabendo que se tratavam de pimenta-rosa, uma especiaria usada em alguns pratos refinados, polvilhada moderadamente em saladas, canapés, purês e cremes salgados. E o melhor: eram justamente o fruto da aroeira. Aquela cuja casca “é boa para o estômago”.
Claro que papai, patriota como si, ficou todo ancho. Afinal de contas, tinha sido ideia sua plantar uma muda no canteiro da calçada. Agora mais ainda ao saber que ela também era conhecida no exterior, apreciada pelos franceses e vendida até na Côte d’Azur!
Tilápia ao molho de pimenta rosaJá de volta às nossas rivieras, igual ou superiormente melhores do que as outras do mundo afora, os pratos preparados com as pimentinhas-rosas tiveram sabor duplo. Do sutil e aromático paladar e das lembranças de Saint-Paul de Vence.
Um belo dia, para surpresa nossa, já familiarizados com as bolinhas coloridas, descobrimos muitos pés de aroreiras que exibiam cachos e mais cachos exuberantes de poivre-roses, quando pedalávamos pelas trilhas de praias e maceiós do litoral sul. “Olha só!” - exclamamos – “serão elas?” Depois de provar e comprovar, enchemos os bolsos. Sim, eram elas, as próprias. Sem precisar dos euros. Apenas pelo custo dos arfantes e renovados pulmões, cheios de ar puro com gosto de mar.
Em outras viagens, achávamos graça vê-las nas prateleiras das épiceries, custando alguns euros e agora, para nós, só o prazer das brisas tropicais.
Mas a lição que ficou não tem apenas o sabor da pimenta, que nem arde, e nem das boas e eternas lembranças de viagem com a família, sempre em torno do amado pai. Veio junto com a realidade que se evidencia na negligência perante os tesouros nativos que se extinguem com a indiferença e a voracidade do progresso desenfreado e sem controle.
Com as aroreiras, estão indo embora de nossas vistas, saúde e paladar os pés de guajirus, de maçaranduba, pitombeiras, mangabeiras, pitangueiras. Tristes, testemunhamos jardins e quintais, falésias e matas nativas dando lugar à inexorável expansão urbana. Tudo se preparando para ser visto, num futuro sombrio, apenas por fotos ou lembranças do que era verde...
Discordo dos que defendem a tese de que a sensibilidade por vezes deixa as pessoas frágeis, vulneráveis, ameaçadas. Esses vêem o mundo exclusivamente pela ótica da racionalidade, sem compreenderem a linguagem do coração. Os insensíveis são pessoas frias, ausentes de carinho e afeição, indiferentes às belezas da vida.
É verdade que, quando estamos com a sensibilidade à flor da pele, nos magoamos com mais facilidade, nos decepcionamos com mais frequência, nos comportamos na influência do medo. No entanto, nada justifica deixar de dar valor às emoções, potencializar os sentimentos íntimos. As surpresas que a sensibilidade exagerada nos apronta, de forma desagradável, devem ser vistas como alertas na vida, nunca como imperfeições da alma.
A sensibilidade nos permite enxergar grandeza nas coisas mais simples, perceber delicadeza nas atitudes puras e ingênuas, vivenciar a suavidade encantadora da natureza. Quando perdemos a sensibilidade ficamos a um passo da estupidez. Ser sensível é estar sempre pronto a oferecer amor, ser solidário nos momentos de alegria e tristeza, oferecer o abraço amigo nas horas precisas.
A inspiração dos artistas e dos poetas nasce da sensibilidade que brota do espírito. Eles conseguem compreender melhor a alma humana porque são emotivos, traduzem espontânea e francamente as sensações que nos oferecem os prazeres da vida, colocam lirismo nas ocorrências rotineiras do nosso cotidiano. São tocados pela sensibilidade aguçada.
Como afirma Clarice Lispector, “jamais eu quero perder a sensibilidade, mesmo que às vezes ela arranhe um pouco a alma”.
A cidade de Petrolina (PE) teve no pintor e escultor Celestino Gomes (1931-2004) um vulto dos mais queridos, verdadeira lenda viva, povoada de histórias que o tempo seguiu cozendo na imaginação da gente do lugar.
Fisicamente foi um branco de boa altura, com olhos e cabelos claros. Ainda jovem, passara duas temporadas na Itália, em Roma, onde pôde experienciar, entre outras técnicas artísticas, impressão de gravuras e modelagem de formas para fundição. Voltara de lá com saberes específicos que o habilitavam ao manuseio, frequentemente criativo, de materiais tanto para pintura quanto para escultura.
No entanto, seu tema artístico por excelência, acabaria mesmo se constituindo no homem do Nordeste e seus afazeres, daí a figura recorrente do vaqueiro em quadros seus. Apartação das crias, festança da colheita e corrida de bois foram os elementos mais corriqueiros de sua obra.
Gostava, porém, Celestino, de construir, de edificar com argamassa e pedra. A fundição e o fogo tampouco foram obstáculos para o utilitarista de sete ferramentas, cuja curiosidade sem fim o tinha capacitado, até mesmo a enfaixar braços quebrados e colocá-los em tipoias, como mais de uma vez ocorreria.
Tecnológica e conceptualmente falando, um quase homem da Renascença habitava a decantada cidade na margem do São Francisco. E foi assim que, muito antes de receber a primeira encomenda pública para criar monumento artístico na cidade, e ainda recém-chegado da Itália, construiu, num ímpeto só, um enorme forno de assar pizza no quintal da casa, transformando-se assim no primeiro pizzaiolo regular de que se tem notícia no sertão nordestino.
Dada sua identificação e relação afetuosa com a vida de sua cidade, Histórias que envolvem Celestino podem girar tanto em torno de personagens da elite local quanto de figuras genuinamente populares. Um exemplo são as duas que se seguem.
Apesar de esguio - magro mesmo -, o artista era chegado a praticar caminhadas matinais, e um seu companheiro para esses percursos diários foi o então Deputado Estadual (depois Federal) Fernando Coelho, que, certo dia, o convida a lhe servir de companhia durante uma excursão pelas proximidades da cidade, programada para depois daquela caminhada. Vivia-se ali o período eleitoral, e o objetivo desse deslocamento nem podia ser outro: “visitar” eleitores.
Se despedem com o deputado prometendo logo, logo, passar na casa do amigo e apanhá-lo. Celestino se apressa nas providências habituais, mas, antes de tomar o café, escuta o deputado lá fora, tocando a buzina da caminhonete. Sai então às pressas, entra no veículo e, juntos, passam a manhã visitando moradores de casas espalhadas por sítios próximos à cidade. Por volta do meio-dia, o artista lembra ao enorme e gorducho deputado – cujo peso passava já dos 140 ks - , que sente o estômago “roncar” de fome, o que não era para menos, ele explicou, naquela manhã havia tomado apenas uns goles de café puro, antes de sair de casa.
Em resposta, o deputado lhe recomenda calma, dizendo que estão de retorno para a cidade e que irão reabastecer no posto de gasolina da família onde, lembra o deputado, há um restaurante – também do papai - onde poderão almoçar, tranquilos. Uma meia hora a mais de tráfego e chegam no posto. A primeira providência do deputado é reabastecer o carro, com o restaurante a poucos metros da bomba de gasolina. Estão nisso, quando o deputado recebe um recado dado pelo frentista do posto, que acabara de receber pelo orelhão o telefonema de um eleitor rogando-lhe que o fosse visitar, pois tinha algo importante a lhe comunicar.
O deputado:
– Um eleitor chamando, Celestino. Vamos voltar, almoçamos depois.
– Mas deputado, o restaurante é aqui. Almoçamos e depois você visita o homem!...
– Não tenho pressa. Aliás, meu médico me recomendou perder, pelo menos, pelo menos... uns 70 quilos…
A frieza e a lógica desse raciocínio podiam até ser compatíveis com o tipo de vida que o deputado levava, mas Celestino sobressaltou-se com aquilo, aquela aparente tranquilidade do amigo o pôs em estado de alerta. Só que, em vez de confrontar a lógica dele, assume-a ao pé da letra, retrucando:
– Você tem um bom médico, deputado. Agora, se eu perder 70 quilos andando em sua companhia, vou sumir do mapa.
Esqueceram, momentaneamente, o eleitor, e foram almoçar.
O artista era também escritor e havia escrito dois livros: ‘’Da Roça à Roma’’ e ‘’De Roma à Roça”, onde descreve contrastes e similitudes entre mundos tão aparentemente díspares quanto a “Cidade dos Césares”, cortada pelo Tibre, e a Cidade dos Coelhos, cujo perfil fora talhado pelas encostas do São Francisco. Gostava, na verdade, amava! se sair, aqui acolá com alguma história fantástica. Numa dessas, narra o sonho da vida de Manezinho de tal, funcionário da Prefeitura de Petrolina, homem simples, mas que nunca escondera de ninguém seu sonho de um dia, ao aposentar-se, comemorar o evento satisfazendo seu antigo desejo de conhecer as origens do Velho Chico.
Até onde sua memória alcançava, aquele rio tinha preenchido praticamente todas as necessidades de sua vida, e quando não, determinado outras. Manezinho bem que gostava de relembrar os banhos da infância tomados nele, sempre na companhia de um bando de outros moleques. Relembrar as brincadeiras de ‘empunha’ no saltar da ponte para o rio. As trampolinagens de menino afoito.
Nos últimos tempos dera para falar na viagem, enquanto cuidava de ir economizando dinheiro a fim de custeá-la. Uma viagem ida/e/volta pelo rio São Francisco, e eis aqui seu roteiro: Petrolina/Pirapora/Petrolina.
Manezinho pretendia ir até ao extremo do rio, no Estado de Minas, onde a cidade de Pirapora marca o limite da navegação, e todos seus amigos, aí, incluído Celestino, sabiam que não estava longe o dia de pôr-se aquele sonho à prova. O que não faltava eram barcos de passageiros para fazer tal percurso, os maiores deles ostentando imponentes Carrancas de proa, criações fantásticas do mestre Biquiba – Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, cuja estética, à primeira vista, distópica, conseguira no entanto, magicamente, harmonizar elementos discordes, não sendo a figuração entalhada por ele nem aterradora nem amistosa, nem homem nem bicho, conservando uma relação de caráter com as próprias entidades mitológicas do rio, com seu habitual elenco de virtudes contrapostas - e que, a todo instante podiam ser vistos subindo e descendo o rio.
0 plano de Manezinho, porém, era outro: atravessaria a ponte para ganhar o vistoso e confortável Vapor Benjamin Guimarães, na vizinha Juazeiro, que era o ponto final no trajeto dessa embarcação, antes de voltar para Pirapora.
Até que esse dia chegou, finalmente. E no convés de cima do vapor, um tanto solitariamente, Manezinho viu seus novos companheiros de viagem acenarem para amigos e familiares que, de longe lhes respondiam, enquanto escutava o característico apito prolongado do vapor, se afastando do cais.
Doze dias se passaram.
Quando o vapor atraca de volta no Juazeiro, chega trazendo dessa vez - em vez da alegria de sempre – pequenas carrancas de dor e medo ainda estampadas na face dos desembarcados. Um medo logo associado à sensação de alívio pela volta sã e salva. A notícia do desastre ocorrido na viagem de volta não tardou a se espalhar pelas duas cidades vizinhas. Verificou-se depois não ser aquele um acontecimento inédito na atribulada história da navegação do rio, mas, por aqueles dias, a ocorrência do passado vinha esquecida, sobretudo pelas novas gerações, e ninguém na cidade teria tido a capacidade de prever uma reincidência dela.
Manezinho sobe ao cais carregado numa maca. Vinha mais morto que vivo, e os recém-chegados, entre louvores e persignações, falavam de três mortes a bordo, como consequência da epidemia de febre que grassou no barco durante o percurso de volta. No auge das infecções, quando não havia mais remédios a bordo, os passageiros, de comum acordo com o capitão do vapor, se tinham decidido, movidos pelo medo terrível de mais contaminações, pela saída extrema de atirar os cadáveres na água.
Manezinho fôra o último dos infectados a manifestar sintoma febril a bordo, depois de extinto o estoque de cascas de quinina na farmacinha do vapor. Antes que lhe aparecessem os sintomas da doença, no entanto, já três companheiros tinham sucumbido aos males diversos causados pela infestação. Ao desembarcar carregado na mesma maca que havia, até ali, salvo sua vida, manifestava então os sintomas de uma bronquite que não tardaria a virar pneumonia - caso não fosse imediatamente hospitalizado e tratado com febrífugos e tetraciclina, um medicamento novo àquela época. Quando, após alguns dias, foi dado como fora de perigo e recebeu alta, o povo já conhecia, em detalhes, a razão de sua sobrevida.
O barco acabara de deixar S. Roque, e dentro de mais 3 dias o Benjamim Guimarães abriria os botões de sua chaminé para avisar o povo do Juazeiro que estava de volta. É manhã, bem cedo, e no salão/dormitório, que compreende uma boa extensão do 2º convés, a maior parte dos viajantes erguera-se já da rede, e viam-se só uns poucos deles, entregues, ainda, à tarefa de dobrá-las.
No relato de Celestino: “Naquela manhã, uma das redes deu a parecer que seu ocupante continuava ainda em sono profundo. Pejada e com as bordas dobradas por cima, seu leve balanço correspondia apenas ao suave ondular do barco na correnteza do rio, embora aquele sono tardio bem que podia ser o resultado de uma indisposição qualquer, afinal, àquela altura, alguns vinham já extenuados pela viagem. Quando é lá pelo meio-dia, porém, a rede começa a se agitar, e dela partem gemidos. Impetuoso como sempre, Manezinho adianta-se, e é o primeiro a ver, e também a vaticinar o que se passa ali. Dentro da rede, o corpo de uma mulher arde e se contorce em meio a delírios de febre. Muito provavelmente foi este o lugar e o momento em que Manezinho se infectou”.
Os passageiros deram-se conta do perigo quando já algumas informações desencontradas atropelavam-se pelos 3 conveses do vapor. Um homem com fortes dores de cabeça exibia estranhas marcas vermelhas pelo tronco, no convés de baixo havia alguém se desmanchando na diarreia, e quando essas notícias invadiram por fim a cabine de comando, no convés do meio, o velho capitão Manoel, não pensou duas vezes e ordenou ao imediato que juntasse o que havia de medicamentos contra febre na farmácia do barco. Era o Tifo. Numa de suas, cada vez mais raras, recidivas.
O relato de Celestino sobre esse surto de febre tifoide – uma variante do Tifo -, acabaria incorporado ao acervo popular do lendário vapor Benjamim Guimarães, um barco que nascera para rios de peito largo como o Mississipi e o Amazonas, gigantes por que passara antes de ser adquirido por um comerciante de Pirapora para fazer história no São Francisco, e timoneado que foi durante décadas por esse seu último Comandante Manoel Mariano da Cunha, esse mesmo que, diante da farmácia de bordo esvaziada, teve o extraordinário tirocínio de arrancar uma prateleira de sua cabine, para, com ela, improvisar a maca que levaria aquele paciente e xará a um banho de imersão nas águas do São Francisco, como única e desesperada forma de debelar o fogo que, visivelmente se alastrava pelo seu rio interno de sangue nas veias.
Deitaram Manezinho na prateleira e ali o amarraram bem. Sem a menor possibilidade de naquele momento se pensar num sistema de roldanas que descesse o corpo ao rio, amarraram, no entanto, cordas a cada uma das extremidades do funéreo pacote e fizeram-no descer aos poucos, esticadas pelo peso. Era preciso manter o pacote ao máximo na horizontal, enquanto o Capitão, aos gritos, corrigia a inclinação. Quando a improvisada liteira chegou a pouco menos de um metro de distância do espelho d’água, o capitão ergueu o braço e gritou que parassem.
Em seguida ajustaram o que mais parecia um esquife sacrificial aos deuses e mitos do rio como a Serpente da Ilha das Cobras, a Mãe d’Água e o Nego d’Água, que na imaginação ribeirinha habitam os covis profundos da lama do rio, aplicando agora pequena inclinação de modo que a parte concernente dos pés fosse ligeiramente mais baixa que a da cabeça, e pudesse, assim, cavar a abertura por onde a tábua mergulhasse por inteira tão logo fosse largada de vez pelos braços da tripulação, a um grito de comando do velho timoneiro Seu Manoel, versado que sempre fora em içamentos, flutuações e naufrágios.
O baque do corpo na água escutou-se no convés de cima, e, como previsto, o rio abriu sua pequena narina e o corpo sumiu temporariamente nas águas. O Comandante, de braço erguido e de olho no cronômetro, contou os segundos que faltavam, para, num gesto cortante, ordenar içarem-no de volta. O corpo assomou despejando línguas de água pelas bordas como um Faraó em seu sarcófago, retirado que fosse do Nilo por uma equipe de antropólogos “. E logo após isto, notaram que, em volta da liteira, a água fervia.
Assombrados, viram os pequenos peixes que saltavam para longe da tábua, e que logo estavam a boiar pela superfície, mortos. O corpo foi retirado da água, e, uma vez no convés, o termômetro acusava baixa substancial da febre. Uma hora depois disso, viram as luzes do Juazeiro faiscarem na distância.
Anos ou décadas depois, quando o apito do velho Benjamim Guimarães não passasse de uma evocação saudosa pelas ribeiras do rio, os homens simples da região gostariam, em seus encontros e comunhões festivas, de relembrar aquele dia em que o “Velho Chico” “freveu”.
A roda-gigante ainda está lá, assim como o carrossel, o viking e outros brinquedos. O silêncio também. A cena sem movimento é um quadro do horror da solidão e do caos. Não tem os rostos horrorizados de "Guernica", de Pablo Picasso, nem o surrealismo e as imagens bizarras transportadas de telas de Salvador Dalí. Paradas em fotografias, gravadas na retina, as rodas-gigantes dos parques de diversões parecem distantes e próximas. Símbolos de acidentes distintos, tragédias humanas.
A primeira roda-gigante parou de girar no longínquo abril de 1986, a segunda há poucas semanas. Em ambas, sinais de que a força humana é potente, mas subjugável, mesmo que seja por uma arma imperceptível aos olhos.
Do primeiro cenário, ficou a imagem da roda-gigante deixada armada no meio da cidade de Pripyat, localizada na Ucrânia, que integrava à época da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), próxima a três quilômetros da central nuclear de Chernobyl. Na madrugada de 26 de abril de 86, o mundo para aquela parte do mundo explodiu em radiação. Em 27 de abril, os 75 mil vizinhos da usina tiveram que deixar tudo para trás, abandonar a cidade erguida em 1970 para abrigar os trabalhadores da usina.
O maior acidente nuclear da história jogava uma comunidade inteira aos perigos da radiação, obrigava-a a fugir às pressas. Pripyat virou uma cidade-fantasma, que ainda hoje, passados 36 anos, exibe os prédios, parques e outras construções, símbolos radioativos, abandonados como se os habitantes tivessem sido abduzidos, teletransportados sem ter tido tempo para recolher objetos simples como fotografias e outros itens de valores pessoais, emotivos.
A roda-gigante jamais foi usada. O parque seria inaugurado no dia 1o de maio, Dia do Trabalho. O brinquedo se transformou em bizarro ornamento para uma paisagem desértica e perigosa.
Nos tempos atuais, uma roda-gigante está parada. Ela me faz lembrar fotografias de Pripyat, pós-abandono. Novamente, um parque de diversão mostra a fragilidade humana. Brinquedos silenciados pela força de algo invisível e letal.
A roda-gigante do parque às margens da BR-230 em João Pessoa é um novo símbolo. As pessoas agora fogem sem precisar deixar suas casas. O abrigo é justamente as suas moradas. Ficar e se isolar fisicamente é a fuga necessária. Como em um roteiro cinematográfico, o perigo está lá fora. Um vírus está à solta e ameaça a vida. A cura é o tempo, remédio para muitos males.
Fico ali observando aquela roda-gigante que me lembra a outra, conhecida em fotografia. Pripyat, que só soube da sua existência pelas notícias, pelas imagens documentais, surge à minha frente. Crio uma Pripyat particular.
Quanta semelhança na paisagem. O silêncio sugere reflexão/inflexão. Pripyat visita a mim e a muitos nesse mundo pandêmico.
E qual cura buscamos? Qual remédio milagroso? A da radioatividade que matou, a do vírus que mata, ou será a dos loucos que empurram, de tempos em tempos, a humanidade para abismos? A humanidade não pode se comportar como a roda-gigante parada.
Que a roda-gigante volte a girar. Que o tempo passe. Ele quase sempre traz a cura.
De cima do muro do cemitério, de onde procurava divisar alguns túmulos, eu escutava o que dizia a velhota com um sotaque lusitano carregado da gente do Norte, ao casal que procurava informações sobre a família.
– Todas estas fruteiras, continuava a velhota, fui eu que plantei, junto com meu marido – que Deus o tenha! Algumas tive que mudar da beira da estrada para cá, mais para cima, porque me roubavam as frutas. Outras, eu mesma enxertei.
Juntei-me ao casal, pois a velhota, uma personagem do século XVIII ou XIX, perdida naquelas paragens, no cimo de uma serra portuguesa, em pleno século XXI, chamava-nos para conhecer a sua casa. Gente da cidade, acostumada à vida sedentária e ao deslocamento em automóvel, subíamos o caminho um tanto íngreme da casa da senhora com um bocado de esforço. Ela, apesar da idade, não menos de setenta anos, sequer arfava. Pelo caminho, ela colhia frutas – ameixas, figos, peras, maçãs – que nos ia oferecendo com uma grande satisfação. Veio-me, de súbito, à mente a história de Joãozinho e Maria. A boa velhinha parecia-me uma bruxa que nos atraía, com sua aparência de bondade e desprendimento, a um covil, onde nós seríamos, por fim, assados e comidos. Mas subíamos, instados pela velha. Sozinha, viúva, idade avançada, filhos distantes, sua única distração era a plantação e a missa aos domingos. Quando chegamos a sua casa, a idéia de covil se cristalizou diante de mim, sobretudo por existir uma toca fechada, onde um cão arfava e gania.
– Ah, este é o meu cãozito. É quem me faz companhia.
Tive a sensação de que era mais uma maneira de a velhota nos enganar. A qualquer instante sairia daquela toca um ogro que a ajudaria a nos devorar. Aberta a porta, saiu um cãozinho carinhoso, que logo aproximou-se de nós, balançando o rabo e querendo nos cheirar e lamber. Já demorávamos bastante ali, sem ter conseguido saber nada a respeito da família do casal, uns Sebadelhes que haviam migrado há muito tempo para o Brasil. Saímos, não antes de batermos umas fotos com a velhota, sorridente, apesar de seus únicos dois dentes. Na sua solidão e abandono, tendo, naquele instante, pessoas que a escutavam, ela insistia para que ficássemos, pois nos daria um pouquito de pão. O sol, no entanto, já andava no meio-dia e ainda teríamos que ir a Terrenho, vilarejo de Trancoso, ali pertinho de Sebadelhe da Serra, onde nos alojamos.
Descemos um pouco a serra, chegamos em Corças, onde encontramos uma mulher que nos apontou um caminho melhor para Terrenho. Pelo mapa, deveríamos fazer todo o caminho de volta, pois Terrenho ficava paralela a Sebadelhe da Serra. A mulher disse haver uma ligação por cima da serra, que tornaria o caminho mais curto. Voltamos e fizemos o caminho pelo topo da Serra, aproveitando a visão do vale verde, todo plantado de uvas e azeitonas, com o rio Douro, caudaloso, abaixo, aproveitado em barragem. À primeira vista, Terrenho não nos pareceu grande coisa, pois ficava ao largo da estreita rodovia. Não nos demos conta de que deveríamos entrar pelas vielas estreitas e inclinadas para chegar ao coração da freguesia.
– Bom dia, senhores. Qual o caminho para a igreja? O grupo de três operários nos olhou com certa desconfiança e nos indicou o caminho, único, sem erro.
Uma igrejinha modesta, sombreada por várias árvores frondosas, parecia fechada. Em frente à igreja, um pequeno comércio que funcionava a um só tempo, como mercado, posto telefônico e correio. Uma senhora idosa, que não parecia nos compreender veio saber o que nós queríamos, mas foi a moça do pequeno comércio que nos ajudou. Nova na região, não sabia dizer nada, não senhor, mas sua tia talvez soubesse, pois vivera ali toda a sua vida.
– Tia Agustinha, Ó tia Agustinha! Está cá um moço que quer ter com a senhora, gritava ela para um sobradinho.
Da janela do sobradinho, tia Agustinha disse lembrar-se, sim, dos Sebadelhes e da menina Emília, que ali vivera e até deixara uma casita fraquita, pois sim. Mas quem se lembrava realmente e poderia ajudar era o senhor Amado que conviveu com eles. Descemos em direção à casa do senhor Amado para saber alguma informação da família do casal. Havia indícios, mais do que fortes de que a família teria vivido ali em Terrenho, antes de partir para o Brasil. Com um ar de desconfiança, sentado em sua cadeira de rodas, o senhor Amado nos recebeu, conduzidos que fomos pela sua afilhada, Dona Justina.
– Sou sobrinho-neto de Emília Pereira... tentou dizer o senhor Sebadelhe, que procurava rastrear as origens da família.
– Impossível, cortou o velho, ela não teve filhos.
– O senhor não entendeu. Eu sou neto do irmão mais velho de Emília Pereira, José Augusto Sebadelhe. Sou, portanto, sobrinho-neto de Emília Pereira.
O velho ainda nos olhava com desconfiança, como quem quisesse nos pegar em alguma contradição. O Senhor Sebadelhe disse que seu avô tinha partido para o Brasil, ainda jovem e lá tinha constituído família. Emília Pereira tinha ido ao Brasil para ficar com o irmão, mas por causa de desentendimento com a cunhada teria voltado para Portugal. Ele queria saber se o senhor Amado os conhecia, se tinha sido amigo de Emília, de quem ele não tinha tido mais notícias...
– Amigo, não, apressou-se a dizer o velho, amigo de amizade, sim.
– Sim, amigo, no sentido brasileiro do termo, é amigo de amizade. O senhor, então a conheceu?
– Sim, conheci todos. José Augusto, António Augusto, Teresa, Filomena, Joaquim e Emília. Filomena ainda vive? Perguntou o velho visivelmente emocionado.
– Eu perdi contato com ela, não sei lhe dizer. Não sei nem mesmo notícia da filha dela...
– Telma, disse o velho.
– Sim, Telma. Pelo visto o senhor a conheceu também.
O velho, então, começou a falar de toda a família. Do avô e dos pais de Augusto Sebadelhe, dos irmãos deste. Haviam, em criança e na adolescência, convivido. Depois da partida para o Brasil, apenas mantivera o contato com Emília, que ali morrera e deixara alguma coisa, que ele mandara para Filomena e até hoje não sabia se ela recebera. A cada palavra, a cada recordação, o velho se emocionava e tinha que buscar ar para poder continuar a narrativa, muitas vezes atrapalhadas pela Dona Justina, sobretudo quando se tratava de falar de bens ou de algum documento da família. O senhor Sebadelhe, também emocionado dizia do bem que o senhor Amado lhe fizera, ao proporcionar-lhe um reencontro com a família, mesmo que fosse à base de recordações. Não tinha qualquer interesse material, mas sentimental nesse reencontro. Agora podia dizer com certeza onde vivera seu avô, ali estivera e pudera reencontrar as raízes.
Valera a pena sair de tão longe na incerteza de encontrar algo e subir uma serra de curvas estreitas para encontrar o passado personificado em um velho numa cadeira de rodas.
Quando pegávamos o carro de volta para Salamanca, cruzamos com o padre que levava a comunhão ao senhor Amado, e ainda ouvimos a voz esganiçada da moça do pequeno comércio.
– Tia Agustinha! Ó tia Agustinha!
(episódio vivido nas Serras do Norte de Portugal, fim de verão, início de outono de 2002)
Milton Marques Júnior é professor, escritor e membro da APL E-mail
Quando o poeta Sérgio de Castro Pinto aniversaria, a poesia comemora. Para homenagear o maior representante da Poesia da Paraíba na atualidade, recorri a outro poeta igualmente notável.
O poeta, igual condor sobrevoando a paisagem da alma, aspergindo a mente das pessoas com poesia, pede para que espalhemos livros.
“Oh! Bendito o que semeia Livros à mão cheia E manda o povo pensar! O livro, caindo n'alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar!”
Eu te admiro Castro Alves porque semeou livros e plantou poesia no coração das pessoas. Bendito és tu, Poeta da Alma, ser tão pequeno, mas grande pelas maravilhas conduzidas em favor da liberdade e pelas canções de amor cheias de tantas emoções.
O poeta condoreiro tinha razão ao exaltar que somente com livros distribuídos em abundância é possível transformar a pedra bruta num diamante humano. Bendito aquele que semeia livros, muitos livros, livros à mão cheia. Abençoado quem faz da poesia nosso alimento.
Acredito que entre todas as Artes, a Poesia salvará o mundo. Na poesia estão os fundamentos para se entender aspectos da vida, a experiência humana da contemplação. A leitura de poesia cria na alma uma sensação maravilhosa. Quando olhamos ao céu com estrelas ou para o espetáculo do horizonte nas silhuetas das serras ao alcance da vista, é leitura de poesia.
Quando leio um poema não busco apenas o que o poeta expressa, mas procuro descobrir minhas próprias emoções.
Nos tempos atuais importa que a poesia chegue às mãos das pessoas, que os versos caindo na alma como enxurrada de água conduzida pela suavidade da brisa, transformem o mais duro coração.
A poesia é um caminho para o entendimento das relações humanas, porque ajuda a conhecer o mistério da existência de tudo como Criação Divina. Ainda mais se tratando de poesia mística, expondo a dimensão espiritual, seja num insight ou trabalhada no mais profundo sentimento do coração.
Louvado seja aquele que semeia poesia, porque ajuda na construção de um mundo cada vez melhor. Cada livro na mão de uma criança é sementinha plantada que brotará conforme a fertilidade do solo.
A importância do livro é contribuir para o florescimento do novo homem, para suaviza a aridez da alma e levar as pessoas a celebrar a harmonia de um novo relacionamento.
Poeta que melhor representa a Paraíba na época presente, Sérgio de Castro Pinto é guardião do diálogo planetário para se chegar ao fraterno abraço global, na plenitude dos tempos.
Oscar Wilde dizia que o patriotismo é a virtude dos corruptos. Ele tinha boas
razões para assim se expressar, uma vez que foi preso em seu país – a Irlanda do sul na
época ainda fazia parte do Reino Unido – por práticas homossexuais. Após a prisão,
foi para a França, onde passou o resto de seus dias. Não tenho a pretensão de, com as
minhas, dar respaldo às palavras do ilustre escritor, mas ele tinha razão. O que é,
afinal, patriotismo? É o amor a pátria, apontarão os melhores dicionários.
Pois bem, por que devemos amor a uma pátria? Ora, quando passamos a fazer parte de algum
grupo cultural não foi por escolha nossa. Ali fomos inseridos pelas mais diversas
circunstâncias, menos por nossa vontade. Mesmo aquele que opta onde prefere
compartilhar a cultura, ele também já é egresso de um outro grupo cultural, do qual fez
parte sem espontaneidade. Será que alguém tem culpa de não ser brasileiro?
O patriotismo não é senão a semente da xenofobia. Esse sentimento de amor
exacerbado pela nossa cultura é o que nos leva ao preconceito. Não foi por outra
causa, que não o patriotismo, que em meados do século passado vimos uma tal raça
ariana nutrir sentimentos de superioridade em detrimento de outras. E alguns desejam
que sejamos como os americanos, bandeira na porta de casa, hino na ponta da língua.
Pra quê? O que o patriotismo americano tem de bom? Essa atitude beligerante, com
fins econômicos, de impor a outros povos a sua cultura?
Se por um lado as fronteiras e as culturas movem-se com a história, por
outro a nossa condição humana continua imutável. Somo seres humanos antes de tudo.
Seja o nórdico da Noruega ou o banto africano, ninguém lhe vai tirar sua condição de
humano. Por que celebrar a segregação comemorando a independência? Antes, melhor
que celebremos a união dos povos, sob uma única bandeira, sem vistos ou passaportes.
Afinal, somos condôminos da Terra, apesar de alguns restringirem o seu uso. Mas falo
da união espontânea, como a que caminha na Europa, e não a imposta.
Orgulho do samba? Claro, mas tenho orgulho do tango e da polca também,
pois são expressões artísticas do mesmo homem, que por um acaso nasceu nesse ou
naquele país. “E o Brasil na Copa?, eu vi você torcendo fervorosamente. Isso não é
patriotismo?”. E nas Olimpíadas também, acrescento, mas não creio que seja de forma
patriótica. A competição entre nações é como a competição dentro de um mesmo país.
Não nutro qualquer orgulho especial em torcer pelo Flamengo, apenas torço. Mas
felizmente nós brasileiros não somos patriotas. O 7 de Setembro não é mais que um
feriado que a gente espera todo ano que não aconteça no sábado ou no domingo.
Para admitir a influência dos Espíritos nos nossos pensamentos e atos é necessário aceitar a ideia de que há Espíritos e que estes sobrevivem à morte do corpo físico.
A dúvida relativa à existência dos Espíritos tem como causa principal a ignorância acerca da sua verdadeira natureza. Seja qual for a ideia que se faça dos Espíritos, a crença neles necessariamente se baseia na existência de um princípio inteligente fora da matéria.
Na verdade, os Espíritos exercem grande influência nos acontecimentos da vida. Essa influência pode ser oculta (sutil) ou claramente percebida. Pode ser boa ou má, fugaz ou duradoura. Não é nada miraculoso ou sobrenatural.
Imaginamos erroneamente que a ação dos Espíritos só se deva manifestar por fenômenos extraordinários. Gostaríamos que nos viessem ajudar por meio de milagres e sempre os representamos armados de uma varinha mágica. Mas não é assim, razão por que nos parece oculta a sua intervenção e muito natural o que se faz com o concurso deles.
Assim, por exemplo, eles provocarão o encontro de duas pessoas, que julgarão encontrar-se por acaso; inspirarão a alguém a ideia de passar por tal lugar; chamarão sua atenção para determinado ponto, se isso levar ao resultado que desejam, de tal modo que o homem, acreditando seguir apenas o próprio impulso, conserva sempre o seu livre-arbítrio.
A influência dos Espíritos é ocorrência comum, garantida pelos princípios da sintonia mental, pois “é no mundo mental que se processa a gênese de todos os trabalhos da comunhão de espírito a espírito”, ensina Emmanuel.
Contudo, antes de ser estabelecida a sintonia entre duas mentes, ocorrem os processos de afinidade intelectual ou moral, ou ambas, pois “o homem permanece envolto em largo oceano de pensamentos, nutrindo-se de substância mental, em grande proporção. Toda criatura absorve, sem perceber, a influência alheia nos recursos imponderáveis que lhe equilibram a existência. E, mais, acrescenta o Benfeitor:
A mente, em qualquer plano, emite e recebe, dá e recolhe, renovando-se constantemente para o alto destino que lhe compete atingir. Estamos assimilando correntes mentais, de maneira permanente. De modo imperceptível, “ingerimos pensamentos”, a cada instante, projetando, em torno de nossa individualidade, as forças que acalentamos em nós mesmos. Somos afetados pelas vibrações de paisagens, pessoas e coisas que cercam. Se nos confiamos às impressões alheias de enfermidade e amargura, apressadamente se nos altera o “tônus mental”, inclinando-nos à franca receptividade de moléstias indefiníveis. Se nos devotamos ao convívio com pessoas operosas e dinâmicas, encontramos valioso sustentáculo aos nossos propósitos de trabalho e realização.
* De "O Livro dos Espíritos" (Allan Kardec):
Questão nº 459: Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos?
Resposta: “Mais do que imaginais, pois com bastante frequência são eles que vos dirigem.”
Questão nº 462: É sempre de si mesmos que os homens inteligentes e de gênio tiram suas ideias?
Resposta: “Algumas vezes elas lhes vêm do seu próprio Espírito, porém, de outras muitas, lhes são sugeridas por Espíritos que os julgam capazes de compreendê-las e dignos de transmiti-las. Quando tais homens não as acham em si mesmos, apelam para a inspiração. Fazem assim, sem o suspeitarem, uma verdadeira evocação.
Maria Antunes de Moura é vice-presidente da Federação Espírita Brasileira E-mail
Li e reli o texto de Gonzaga Rodrigues “Carta para um amigo”, publicado recentemente neste blog. De início, até vibrei, achando que o cronista adotara o espaço virtual criado e generosamente disponibilizado pelos Romero, Carlos e Germano. Estaria então, pensei, de alguma forma suprida a sua sentida ausência nas folhas de “A União”. Mas depois percebi que não era o momento para se comemorar, pois Gonzaga afirmava não ter se decidido a respeito. Estava ele ainda a refletir sobre isso (e tantas coisas mais), numa tentativa de se “reacomodar para esse fim de viagem, que começou pela ‘sopa’ de Mestre Chico de Alagoa Nova e não foi além das linhas da Bonfim de Severino Camelo”.
A propósito, a certa altura de seu texto Gonzaga pergunta: “Que vou fazer mais em jornal?”, e a gente sente, com um nó no peito, que a indagação é mais ampla – e mais funda. Na verdade, o cronista, do alto de suas oito décadas de estrada, parece dizer-nos, com um certo fastio: Que vou fazer mais nesta vida?, o que nos deixa quase sem palavras para responder.
Sim, porque o que podemos nós, pobres mortais da planície, dizer, em tal contexto, a alguém que já viu tudo, leu tudo, refletiu tudo, sofreu tudo, enfim, viveu tudo em oitenta anos de rica e plena existência? Seria muita audácia de nossa parte, creio eu. Se ao menos eu lhe fosse pessoalmente mais próximo, ou apenas mero companheiro das lides jornalísticas, boêmias e literárias ... Fosse um Nathanael Alves redivivo, um Marinho Moreira Franco, ou qualquer um dos raros que têm o privilégio de chamá-lo de “neguim”...
Gonzaga RodriguesMas não é esse o caso, pois sou simplesmente um leitor e admirador do filho de Dona Antonina, sem nenhum direito a atrevidas intimidades e a descabidos aconselhamentos. Sendo assim, respeitosamente emudeço diante do desabafo do mestre. Mas não sem antes arriscar-me a afirmar que o compreendo e respeito, face os últimos aborrecimentos que o atingiram. Mas, de qualquer modo, quem somos nós para aquilatar – e penetrar - as mágoas dos nossos semelhantes?
O que sei e o que posso asseverar é que o cronista maior (sem demérito dos demais) ainda tem muito o que fazer em jornal e na vida. Ao que sei, e graças aos deuses ou ao Deus único, sua saúde é boa, assim como sua disposição, não sendo, pois, chegada ainda a hora do recolhimento, salvo o imposto temporariamente pelo vírus.
Deixemos então Gonzaga atravessar em paz seu deserto pessoal, esse Mar Vermelho tardio e inesperado. Deixemo-lo reacomodar-se objetiva e subjetivamente perante o mundo e a vida. Sem nenhuma pressa. Pois que confiamos haver ainda muita viagem pela frente, mesmo que seja apenas em torno da aldeia ou, quem sabe, do seu quarto.
Francisco Gil Messias é ex-procurador-geral da UFPB E-mail
Ela estava lá, quase intacta, repousando por entre papéis também esquecidos pelo tempo das gavetas trancadas.
A gaveta se fez invisível. Às vezes elas o são de fato. Estão lá, mas para ninguém. São quase tampos ou molduras de móveis de canto. Há nas gavetas muitos mistérios. Mistérios de memórias das brumas do esquecimento.
Gavetas são o inconsciente da casa. Às vezes se perpetuam quietas e caladas, quase sonâmbulas. Estão lá nos móveis com pernas que não andam. Acima delas há, não sem espanto, porta-retratos com as memórias que devem ser vistas, aquelas que se compartilham ao alcance dos olhos alheios.
É nas gavetas-inconscientes que dormem as cartas. Aqueles escritos da saudade, dos tempos que insistem em arranhar o presente com os fantasmas do passado. Velhos passaportes de viagens sem fotos, só com carimbos das roletas dos encontros, das despedidas. Botões soltos, não se sabe de onde. De alguma camisa cuja casa sem botão marca nossas promessas de consertos n´algum dia. Um botão que nas noites solitárias testemunhou parte das angustiantes vidas ao lado de um copo de vinho, único companheiro que amansa a fera de existir no mundo de vazios. Há gavetas com flores secas. Quiçá um dia cheias de vermelhos e magentas, de amarelos rajadinhos de estranhas sardas. Estavam um dia viçosas e intumescidas numa lapela em dia de risos. Cheias de memórias dos tráfegos dos amores, como também um passaporte para uma vida de sonhos e eternidades. As gavetas-inconscientes são mudas. Nem rangem. Mesmo sem chaves, são lacradas por um sei-lá de despercebido. São lacradas pelo temor dos seus desconhecidos objetos.
Abri minha gaveta. Andava em busca de algo cuja importância agora se perdeu, um objeto daqueles que somem nos vazios estreitos dos criados mudos, que somem para depois aparecerem quando já importância não têm. Havia quase uma desesperança em mim. Um cansaço daqueles próprios das procuras de objetos quase-botijas. Nem mais sabia ao certo onde e mesmo para que achar o objeto perdido, quando me deparei com aquela gaveta. Estava lá, solitária, como um predador à espreita durante horas. A mim me veio por um triz um desdém daquela gaveta. Pensei mesmo em nem abri-la. Uma decepção a menos. Tal qual um ato falho, deslizei-a para fora do móvel. Como uma boca, ela engoliu minhas mãos, ávidas pela tensão da busca, talvez do encontro, da surpresa.
Quase que no fundo daquela garganta-gaveta, estava ela. Dormida e quieta por anos, quem sabe. Estava ela sob dobras, em três. Perto dela um envelope sem endereço e alguns selos com a cola vencida. As páginas estavam preguiçosas de se abrir. As dobraduras rangiam feito a ferrugem dos que adormecem sem morrer. Uma única folha com aquela icterícia das gavetas-inconsciente que a tudo amarela. Era minha letra. Percebi pelo corte do T. A caligrafia é como uma dança. Nela um casal de a e m, de mãos dadas, como uma ciranda na qual entravam o o agarradinho ao r. A-m-o-r.
Na caligrafia se sabe da alma do redator. Um T mais salteado; um M ondulado; um S encaracolado. No papel, dança o lápis regido pela mão. Parece um pincel, sem cores, mas com enovelamentos de formas conectadas em palavras. Dançam as vogais seduzindo as consoantes ávidas para fazer delas um som, um sentido. E ao impressionarem nossos olhos, fazem com que palato, língua, lábios e garganta se movam também, produzindo num sopro a criação do verbo, do verbo que dá corpo à forma.
É a escrita o artesanato que modula as ideias. Como um pintor e sua paleta de cores, eu escolhi cada palavra, cada frase, cada parágrafo, que modulou o sentido ao meu pensamento.
Era uma carta para quem se foi. Uma carta de partida, de parto, mas não de nascimento e sim de distância. Eu a escrevi para ti, que sumiste quando o sol acordou o dia. Como as sombras da noite, tu te evanesceste. Ficamos eu e aquela presença medonha. Aquela presença que não enche, mas que esvazia.
Eu experimentei o estar-só um segundo depois da sua partida. E não adiantou rolar na cama no meio dos teus cheiros, me agarrar naquele travesseiro tal qual mãe que, arrependida do parto, quer seu filho de volta à barriga. Eu andei meio trôpego depois da tua partida. Ainda tentei lavar os pratos que havíamos usado naquela noite última. Na maresia dos meus olhos sem tua presença, tua taça escorrega e se parte. Fica a minha. Ainda tentei pegar aqueles cacos, sei lá para quê.
Mesmo colados, eles já não mais traduziriam tua sede. No escorrer da torneira que esqueci aberta, quem sabe pra dividir meu pranto, sentei como feto abandonado junto à soleira da porta da cozinha. Por quase um segundo cheguei a escutar o tintilar das chaves e teus mansos passos pelo corredor. Tu agora já quase um fantasma povoando os tijolos da saudade do meu muro de lamentações.
A carta nunca foi enviada. Na gaveta-inconsciente estava dormida. Também inconscientemente o ato de deixa-la quieta dissesse muito do que não queria. Do que eu não disse para te parar. Do que eu acreditei que só o olhar nos bastaria. Que quando nossos olhares se cruzassem, todas as palavras secariam. A ausência daquela palavra nunca-dita, daquele mal-dito silêncio, do terror do eco quando gritei “volta!” depois da tua partida. O eco é a maldição da própria voz. Gritei para mim. Gritei para os labirintos daquela casa sem ti.
Reli a carta. Mas não toda. Havia nela, nas suas linhas últimas um borrão. As letras se enovelaram e perderam o sentido. Viraram restos de letras, fardos de palavras empilhadas sem nexo. Fonemas de sussurros voláteis. Traços de uma língua sem tradução. Tentei, inutilmente, arrumar-lhe num sentido. Pilhar quem sabe a palavra que nunca foi dita.
Não. Deixei o borrão para o que ele foi feito: a incompletude. Este hoje é o elo que a ti me liga. E a sensação que me invadiu foi a de que finalmente te deixei ir. Porque quando se ama, nos tornamos imensamente desnecessários..
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais e professor E-mail