O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro seguro nos descaminhos da vida. Essa característica da nossa espécie é que propicia o aparecimento de orientadores espirituais ou guias de comportamento.
Não falta quem se aproveite do nosso natural desamparo para nos vender fórmulas ou manuais de conduta, nos quais estaria a chave para a conquista da felicidade. Só que esse caminho não existe fora de nós; deve ser construído por cada um. Nenhum guru conhece das pessoas o que elas intimamente são, por isso não pode apontar a ninguém o caminho que as faça felizes.
Fiquei em dúvida se escrevia ou não este texto. Às vezes acontece isso comigo. Alguns temas são delicados ou ambíguos, potencialmente capazes de gerar controvérsias. Fujo deles, tal como fazia um homem sábio, Machado de Assis. Há quem goste de polêmicas, muitos as procuram. Não é o meu caso. Delas, tenho tédio, como Machado, pois aprendi que nunca levam a nada, salvo à radicalização dos pontos de vista em conflito, ou seja, elas pioram muito o que muita vez já era ruim. Discutir futebol, política ou religião? Tô fora. Posso até eventualmente escrever algo relacionado a tais assuntos, mas não com a intenção de polemizar com ninguém. Quem quiser que tenha suas opiniões e seja feliz com elas, se possível for. Mas vamos ao touro que tanta confusão gerou
Ítaca, minha Ítaca, quando as horas se enchem de sombras e um nó se instala na minha garganta, lembro de ti. Nos dias em que as sereias entoam as suas enganadoras cantigas, a tua lembrança é o que me impede de mergulhar no abismo. Meta primordial, Ítaca é a chegada em casa, a volta ao amor mais caro, o olho a contemplar a paisagem quase perdida. É o descanso após a longa jornada de encantos e asperezas.
"Que eu não me esqueça,
mas que também não lembre o tempo todo"
O primeiro adeus doloroso aconteceu quando deixei a cidade da minha infância. Meu pai era um nômade, não aguentava viver muito tempo num mesmo lugar, por isso arranjava trabalhos que lhe permitissem viajar. Eu não acreditava que diria adeus ao grupo escolar que ficava do lado da minha casa, onde Dona Adelaide, a diretora, que morava ali na frente, tocava piano quando estava feliz. E a Maria Cristina, a menina de cachos dourados adotada por ela, uma princesinha, minha primeira paixão, mesmo sem a gente saber o que era aquilo. Por anos guardei nossa foto, num balanço de dois lugares que tinha no jardim da sua casa. Aos meninos da minha rua, cujos rostos desapareceram da minha memória, assim como seus nomes.
Detesto o barulho, todas as formas de barulho, inclusive o onipresente ruído dos equipamentos eletrônicos. Não uso smartphone, ainda converso pelo telefone fixo. Smartphone é para quem quer e precisa ser localizado rapidamente ou para quem quer ser o primeiro a saber das coisas. Não é mais o meu caso.
Como dói essa saudade…
Bem sabia que era assim.
Mas a falta de costume
ou da plena consciência
faz a gente indiferente
ao raiar do novo dia.
Como dói essa saudade…
A vontade de apertar,
de beijar e de cheirar.
Como dói essa saudade
que eu tinha esquecido
de sentir, de vez em quando,
Foi sempre cheio esse consultório. É o consultório do dr. Azzouz, na rua Augusto dos Anjos. Há de ser mesmo de raiz oriental esse dr. Azzouz, para manter-se fiel ao mesmo lugar onde sua denodada aventura começou e logrou a confiança do “Vá ao dr. Azzouz!” / “Leve ao dr. Azzouz!”
Tomei uma decisão de não me meter em polêmicas, porque, já há algum tempo, as considero, além de infrutíferas, desgastantes. Não sei o que é pior para o nosso espírito. Decidi, no entanto, escrever, mais uma vez, sobre o mais recente livro de Solha, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite, não para polemizar, mas para discorrer um pouco sobre o seu livro ser ou não um livro hermético.
O sentimento religioso provavelmente surgiu nos tempos primitivos da humanidade, a princípio baseado no medo do desconhecido: o medo da noite com os sons que não sabiam explicar, o medo causado pela perda de seus entes queridos, associado à falta de explicação para todos os fenômenos que não conseguia explicar: o trovão; o raio matando pessoas e outros seres; e todos os outros fenômenos da natureza.
Transcorria julho de 1984 quando a leitura de um artigo do amigo Hélio Zenaide me fazia cair o queixo. Então Secretário de Comunicação da Prefeitura de João Pessoa, Helinho escrevera n'A União, o jornal pertencente ao Governo da Paraíba, sobre a visita de entidades extraterrenas a um grupo de moradores de Sousa, a mais de 470 quilômetros de João Pessoa.
Artigo do próprio punho, na página de opinião do Jornal, a fim de que não restasse dúvida quanto à história e sua autoria. Mesmo assim, liguei em busca da confirmação daquilo que eu acabava de ler.
Embora muitos considerem o concretismo uma retomada do espírito vanguardista de 22, o fato é que esse movimento articulou uma linguagem tão desprovida de humor quanto a de 45, consistindo, pelo menos nesse aspecto, numa vertente desta última. Daí ter-se distanciado do modernismo, o que não ocorreu com Mario Quintana, cuja verve irônica e humorística aproxima-o do Manuel Bandeira de Libertinagem, apenas com uma diferença: no poeta pernambucano, a incorporação do humor é decorrência de uma estratégia intelectual que visa a neutralizar o “gosto cabotino da tristeza” do eu lírico para reajustá-lo ao “mundo dos sãos”. Já no poeta gaúcho, o humor é um componente orgânico, visceral, mas nem por isso menos eficaz no sentido de evitar os excessos de um temperamento regido muito mais pelo sentimento do que pela razão, conforme ele mesmo o diz em Acontece que, do livro Caderno H:
Na origem, um galo muito metido a besta achava que o sol só nascia porque ele cantava. Toda madrugada ele cacarejava e só depois o sol nascia. Até que um dia ele dormiu demais e quando acordou o sol já havia nascido.
Aqui na Paraíba eu já conheci uns quantos “galos” de Chantecler.
O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação ótica do pino do meio-dia. No verão, a estrada por sobre a parede da barragem, repisada por bichos e gentes, costumava soltar aquele pó amarelado, quase místico, que recobria a todos, com a sem-cerimônia de um manto real.
As cabaças, abastecidas no porão da represa com algumas dezenas de preciosos litros d’água, penduradas no pau de aroeira roliço, atravessado no trapézio nu, retesado e caloso, balouçavam obedientes à cadência marcial das passadas,
ressumando gotículas prateadas de uma chuva inútil, que evaporava ao rés do chão.
Na cintura, um retraço de cordame segurando os calções de um madapolão mole, furta-cor de tão gasto, fazia barreira ao suor que lavava, abundante, o torso habituado aos grandes esforços. Ainda que sem um grama sequer nas costas, ninguém alcançaria a marcha forçada daquele conjunto de pesos e contrapesos, equilibrado como uma equação newtoniana, flutuando em meio à quentura que emanava de toda parte, a quentura sólida do semiárido. O embornal de couro de boi, presente de Padrinho, com a cinta larga atravessando, desde o ombro esquerdo, todo o tórax, até à cintura, completava os paramentos.
Um pouco mais atrás, num trote ritmado, o cachorro vira-lata pedrês, miúdo e arrepiado, arquejante, acompanhava os passos do dono com desinteressada atenção. Conhecia cada seixo, cada lagartixa, cada pardal daquele caminho de roça. As nuances aromáticas das suas urinadas frenéticas voluteavam em ondas familiares, demarcando o território e imprimindo ao trajeto toda a segurança de que o grupo necessitava. Não havia o menor sinal de perigo.
Meio sentado numa pedra, desafiando a gravidade no trecho em que a parede do balde mais se inclinava em direção à linha d’água, o menino alourado de pele tostada e cabelos espessos assistia àquele cortejo, com os olhos brilhantes, mastigando um talo do capim-santo que, cintilante, atapetava a encosta íngreme.
Logo que os olhares se cruzaram, os dentes do homem, de uma brancura polar, emergiram num largo e genuíno sorriso, como se um copo de água fresca se lhe apresentasse alguns metros adiante. O cão, farejando o ar e agitando a cauda descarnada, apressou o passo, dando pequenos rodeios, levantando mais corpúsculos da terra cor de ouro. A procissão chegara ao auge nesse encontro e o menino, ágil que nem filhote de jaguatirica, levantou-se de um pulo e correu para a tropa, mirando o embornal.
— Trouxeste para a gente o quê?
O homem parou lentamente, deu um longo suspiro e, dobrando os joelhos com o corpo ereto, descarregou no chão os recipientes, pousando sobre estes, cuidadosamente, a trave de madeira:
— Eu já disse que essa encosta escorrega e quando vosmecê cuidar... tchibum! Está nadando com as piabas! – disse, rindo ainda mais e entregando o embornal ao menino, enquanto o cachorro, excitado, soltava breves latidos esganiçados.
O menino desenlaçou, ávido, a presilha e vasculhou o conteúdo do bisaco com o rosto quase enfiado na abertura, sorvendo o cheiro de couro curtido. Retirou de lá um embrulho quadrado, coberto com folha de bananeira atada com sisal, e outro maior, irregular, cujo conteúdo achava-se enrolado num pano fino, manchado. Um odre de pelica, fechado por uma rolha, continha a água de beber.
— Rolinha assada ou nambu? Será uma costela ou um pernil? Fala logo! — perguntou o menino, sem abrir os invólucros, mas com a saliva escorrendo das comissuras dos lábios.
— Vamos comer, seu cabrito guloso, é melhor do que adivinhar! — Respondeu o homem com ternura, recolocando a trave de madeira nos ombros e amarrando as cabaças nos cipós.
Seguido pelo cão, descendo a parede no ângulo oposto à lâmina do açude, com juvenil habilidade a despeito dos compridos anos de vida rural, o homem tomou o sentido de um umbuzeiro centenário,
sob cuja copa, tão desgrenhada quanto frondosa, dormitava um bando de patos de penugem preta e branca, com os bicos chatos enfiados nas asas.
Na sombra fresca e acolhedora, a matilha acomodada se preparou para a refeição: o homem passou as mãos, à guisa de limpeza, pelo solo do espaço preferido, bem sombreado, e sentou-se com os membros inferiores recolhidos de um só lado do corpo, parecendo absolutamente relaxado. O menino, impaciente, abancou-se também, cruzando as pernas sob si. E o animal, depois de enxotar os patos com canina autoridade, deitou-se ao redor, como que fechando o círculo, cônscio da importância da sua presença naquele convescote.
Depois de breve ablução das mãos e rostos com a água retirada do odre, o primeiro pacote foi ritualisticamente aberto sobre o relvado, mostrando uma rapadura média, cor de argila, cujo cheiro marcante, agridoce, do melaço que lhe originara acendeu as narinas dos comensais, fazendo o menino arregalar os olhos e o cachorro esticar as orelhas. Como se não bastasse, torresmos de castanha de caju assada sobressaiam aqui e ali da superfície suculenta do petisco de cana-de-açúcar.
Sem tocar na rapadura, o homem desenrolou cautelosamente o segundo embrulho, como quem manuseia uma preciosidade. Para decepção do menino, revelou-se uma pasta disforme esverdeada, da qual minava um líquido amarelo. A repulsa fê-lo recuar, arrastando-se para trás sobre os joelhos dobrados.
— É uma coisa que eu preparei para vosmecê comer hoje, antes da rapadura — respondeu o homem com os olhos bem fixos nos do menino.
— Como lá essa coisa de jeito nenhum! — zangou-se o menino, já fazendo menção de levantar-se.
— Ouça-me — retrucou gentilmente o homem - Está na hora de vosmecê aprender que os animais de Deus são nossos irmãos e que existem outras maneiras de matar a fome sem precisar deitar rês nem criação. Matute aí vosmecê o que os bichinhos sentem quando a marreta avoa no toutiço deles, derribando-os sem dó nem piedade. Ou quando a pedra de funda abre a cabecinha da codorniz, quebra a asa da arribaçã... E ainda o peixinho endoidecendo pelo ar, com o anzol espetado no céu da boca?
Fez-se silêncio e um bem-te-vi voejou por sobre o trio, pousando alguns metros adiante, numa galha abaixada da árvore. Pouco mais, seu par fez o mesmo percurso, e ambos, em plateia, quedaram-se a assistir a conversa. Os patos retornaram em fila indiana, acomodando-se perto do tronco e longe do cachorro. Uma vaca mugiu alto no horizonte, decerto exortando sua cria. O sol atingira o zênite e o dossel do generoso vegetal ofertava abrigo a todas as criaturas, livrando-as da inclemência do astro-rei no seu clímax. O homem prosseguiu.
— Esperei com paciência vosmecê sair do mimo e ficar mais taludo para lhe dizer isto: não se come carne de bicho vivo nenhum. Os ovinhos e o leite, desde que não careça do sacrifício ao ente e à ninhada, pode ser; tem a hora de recolhê-los sem prejuízo. Mas matar para comer? Não se pode... Não nos é permitido... — e meneou a cabeça, com uma manifestação pia nos olhos cansados.
— Agora, queria que vosmecê sossegasse e provasse o que eu preparei, receita velha da minha terra, para depois assuntar por vosmecê mesmo — continuou. — Se vosmecê não gostar do preparado, não lhe aporrinho mais. Fui eu mesmo que fiz, com esse instrumento aqui — a abriu as mãos em leque para o menino.
Contrariando os sentidos e mercê do afeto e da confiança que nutria pelo homem, o menino juntou os dedos indicador e médio, raspou a pasta, levando-a imediatamente à boca.
E, na medida em que mastigava, a careta de asco ainda renitente foi se transmudando numa expressão deslumbrada de quem prova o maná numa manhã orvalhada. Acabara de descobrir o segredo do velho homem: o respeito ancestral pela vida!
Eu criaria um Céu se nele coubessem as minhas asas,
Mas os sonhos dos homens
que recolho, que abraço, precisam de um mundo que se expande aos limites do descabido
Por isso a queda no inominável da ausência,
a frustração de me vender ao vento,
de tombar perante o branco
da página, do não escrito,
Quando, em 1970 - fui transferido pelo Banco do Brasil, da agência de Pombal – onde trabalhara por sete anos – para a do Varadouro, a única em João Pessoa, na época, estava falido. Investira casa, caminhão, o que tinha e o que não tinha no filme O Salário da Morte e perdera tudo. Dando meus expedientes de oito horas no banco, a necessidade de continuar a produzir arte era imperiosa e busquei uma sem custo. Danei-me a criar poemas. Quando tinha uns quarenta, me perguntei “A quem isso pode interessar?” – e botei o livro na gaveta, passando a elaborar o romance “Israel Rêmora”. Lá pelas tantas, no entanto, percebi que os poemas engavetados tinham muito a ver com a prosa que estava fazendo. Foi então que a experiência do cinema me valeu: com tesoura e fita adesiva, passei a literalmente montar os textos em prosa àquela série de versos, que passaram – sem que eu precisasse dizer isso – a ser monólogos interiores de meu protagonista. Como se a cada capítulo narrado por mim, já houvesse um “comentário” do personagem a respeito. Funcionou. Ganhei o Prêmio Fernando Chinaglia com o resultado e o livro saiu pela Record em 75.
"Meu Deus!
Preciso me libertar do esboço em que estou esbatido e apagado entre linhas certas e incertas e borrões.
Preciso me libertar do mármore em que me sinto preso dentro
Inacabado.
Mas é que... sou uma espécie de anjo caído
resíduo pregado no fundo da gravitação
traído
e que só se permite contemplar o Cristo sorrindo
leve e limpo
subindo
deixando-me embaixo
entre o peso das pedras
da tumba
e dos soldados.
E eu preciso me libertar do emaranhado de fios
da rocha bruta
e da gravitação pesada
para também saltar.
E eu preciso me libertar e saltar
Mesmo sabendo que
como um bailarino
serei devolvido ao chão
depois da pirueta
pela mesma força irreversível que atrai o futuro para o fundo da ampulheta.
Mas eu preciso!
Confesso que
às vezes
eu me sinto como que envolvido num clima de sombras e névoas
numa luminosidade trágica
pregado ao largo no madeiro
com as omoplatas abertas
a cabeça caída como um peso morto sobre o peito e fremindo endurecida ao vento
meus cabelos e panos se agitando em torno do que foram meus sentidos.
Confesso que
às vezes
eu me sinto sendo levado com choro e passos para a cova
dentro de um lençol
minhas mãos balançando-se rijas e brancas
fora dele
eu de olhos fechados
pesado
anestesiado.
Confesso que
às vezes
eu me sinto como se já tivesse passado por tudo.
Oh céus.
Veja como eram louros meus cabelos
e como meus soldadinhos de chumbo ainda tinham a esgrima dentro da bainha
como eu já andava com a espada dentro da bainha.
E veja minha fé
cálida e fininha
de uma simplicidade suntuosa e delicada
cheia de minúsculas anunciações com asas iridiscentes em fundos de ouro
cheia de virgens de auréolas filigranadas e véus transcaríssimos.
Era a minha fé:
fácil
sem peso nem profundidade
linda
como meu sono depois
sobre coloridas histórias em quadrinhos!
Mas meu avô me mostrou num museu um monstro esculpido da dinastia de Han
e me fez entender que aquilo não representava um animal
mas a fera que havia nele.
Despertou em mim as agulhas
mesquitas
minaretes aflitos
de uma rebuscada arquitetura interior
e foi quando a ânsia pelo conhecimento da essência das coisas começou
e começou a minha solidão.
Foi quando vi o mar e a rocha se encontrando com o estrondo de vagões se engatando
mas se desengatando sempre:
as coisas adultas
e quanto vi Atenas:
meu mundo quebrado.
Foi quando ingressei na engrenagem que tritura na parede o segmento de reta que vem de Alfa e vai a Ômega
onde as rodas denteadas da moenda esmagaram e esbagaçaram meu futuro e meu presente
deixando atrás de mim uma trilha de perspectivas destruídas
para sempre irrecuperáveis.
Foi quando comecei a me sentir insignificante e latente
andando anônimo na rua
como um Billy Batson ou Clark Kent.
Um gênio poderoso sem a coragem suficiente para gritar na rua uma palavra mágica e cabalística
que libertaria de mim os poderes dos deuses
semideuses e
heróis.
Um gênio sem a coragem de desatar o nó górdio da gravata
desabotoar o colarinho
e
nu
encontrar em mim o super-homem de aço e perfeito que sempre sonhei ser
senhor de meus próprios caminhos.
Meu avô me disse que o Sol foi adorado como um deus imaculado... até que nele também se descobriram manchas.
E que a Terra teria vindo dele há muito tempo
trazendo consigo
em estado latente
nossa indústria pesada e o esoterismo
nossas guerras
pestes
crimes
o ateísmo
cristianismo
estas três palavras
e o último assassinato que vi na imprensa.
E penso que talvez a Terra tenha saído justamente de uma daquelas manchas solares
que a roseira arranca do chão e expurga em explosões de espinhos e de espinhos
até conseguir a pureza de suas rosas brancas
e rosas.
Talvez sejam esses Cristos
sangrentos
cuspidos
com as cabeças enroladas de espinhos
que eu vejo em minha casa e em todas as igrejas
nossos retratos de Dorian Gray
realmente “carregando nossas iniqüi dades e sendo esmagados por nossos crimes”.
Agora eu olho o Sol e penso em quantos
pelo sentimento de culpa se afligem.
e que talvez sejam esses Cristos suas roseiras mentais tentando expurgar suas manchas de origem.
NOTA Do livro "Israel Rêmora ou o Sacrifício das Fêmeas", Editora Record 1974, Prêmio Fernando Chinaglia
É mais que provável que a criação artística tenha, até aqui, resultado mais da intuição de artistas que de supostos saberes reflexivos da parte dos mesmos. Se do primeiro processo criativo o individuo recebe os favores da intuição, na seguinte função cognitiva prevalece o pensamento, segundo as categorias dos tipos psicológicos até hoje não contraditas de Carl Jung. Uma explicação para o predomínio dessa tendência, perfeitamente atestável na própria História da Arte, pode ser a incorporação pela linguagem artística de elementos discursivos soando de certo modo abruptos, destoantes, e num primeiro momento até esdrúxulos –